Medicina e pensamento arcaico

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] principal característica do pensamento arcaico é ser da totalidade, da natureza no seu todo, da totalidade da natureza, numa das suas formulações. Com os atomistas, há uma tendência analítica para resolver “todos analíticos” e “todos compostos” nos seus elementos. A própria noção de elemento é formalizada em átomo, aquilo que é indivisível e nas suas agregações mínimas resultantes de operações elementares. O que se passa com a oposição irresolúvel da ligação de um pensamento a uma extensão ou na pergunta kantiana “como são possíveis os juízos sintéticos a priori” em causa não está a ligação de um presente de mim a um passado há pouco de mim e um futuro daqui a nada de mim tal como não está apenas em causa a ligação de um presente agora do que eu tenho à minha frente com esse mesmo conteúdo há pouco e daqui a nada, mas a ligação entre um ver e um visto, o problema da sincronização não analítica de mim a dar conta de que estou a ver um horizonte que se estende à minha frente. As operações em causa têm de ser cognitivas, a de uma percepção que dá conta de um perceptível, a de uma lembrança que se recorda de um conteúdo passado, a de uma expectativa que põe de pé uma antecipação que prevê ou tentar fazer previsões de conteúdos ainda por ser.

O pensamento arcaico tenta ver a totalidade da natureza aberta no seu todo. Na formulação estoica cada ser humano é uma partícula do perfeito, do todo acabado ao qual nada falta para ser. O presente não é o resultado de uma percepção. Antes, há percepção, porque temos continuamente acesso ao presente. O presente apresenta-se e torna-nos a nós e às coisas todas bem como aos outros presentes. O passado não é o resultado de uma memória. Há memória, porque o passado se faz sentir de alguma maneira, não nos deixa esquecer dele ou então caiu para um esquecimento irrecuperável. O futuro não é o resultado da nossa capacidade de previsão e antecipação. Antes, é por haver futuro que há expectativa ou ausência dela, que nos antecipamos ou chegamos tarde demais, que temos esperança ou falta dela. O tempo abre-se na sua totalidade. Por isso, também não está restrito ao tempo da expectativa de vida ou ao tempo em que a existência humana permanece em vida. Como com santo Agostinho no livro do Tempo, em mim estão todas as gerações de pessoas passadas e todas as gerações futuras de uma descendência. Entre a primeira geração e a última geração há este manto de tempo sempre a desenvolver-se ou então a implicar-se no seu próprio interior. Mas é sempre do todo para as partes que o tempo existe, tal como um poema é a sua totalidade e não é compreensível da primeira letra da primeira sílaba da primeira palavra adicionada à última sílaba da última palavra do poema. Na primeira sílaba está a totalidade finda do poema, como no primeiro instante está a totalidade do tempo a haver completamente acabado.

O acesso que os antigos pensaram como o autêntico não é por isso o teórico, embora a relação teórica com as coisas fosse pensada de um modo muito pouco intelectual se assim se pode dizer. As grandes categorias, diz Sloterdjik, são eróticas e polémicas. Mas não só. Os seus operadores são dietéticos: assimilação, dissimulação, ingestão, digestão, congestão. São também as formas complexas da respiração: inspiração e expiração, o ritmo do fluxo sanguíneo e do batimento cardíaco, a atmosfera disposicional que vibra nas coisas e a atmosfera com o seu clima que nos faz arrefecer ou aquecer, suar ou enxugar, etc., etc..

É na análise da doença que percebemos desde sempre encontrar-nos numa situação vulnerável e expostos ao mundo envolvente. Há tantas doenças quantos órgãos, aparelhos, partes de membros e membros. A afecção vem de dentro para fora, do interior para o exterior e do exterior para o interior: um banho, o ar, a exposição a outros elementos, alergias obtidas por contacto com substâncias. “As diferentes doenças dependem do nutriente, da respiração, do calor, do sangue, da fleuma, bílis, humores, na carne, gordura, na veia, na artéria, na articulação, no músculo, na membrana, osso, cérebro, espinal medula, boca, língua, estômago, ventre, intestinos, diafragma, peritónio, fígado, baço, rins, bexiga, útero, pele, tudo isto é pensado ora como um todo numa unidade ou como uma parte de um todo, a sua grandeza é óptima ou não.” (Hp. Alim. 25.)

É no contacto com o mundo e os seus elementos, o ar que respiramos, os líquidos que bebemos, os sólidos que ingerimos, como nos encontramos de pé, a correr, sentados ou deitados, a forma particular como pisamos o solo consoante as funções que estamos a desempenhar, é no contacto com as coisas numa situação pragmática, numa resolução técnica, no desempenho de uma função, na execução de uma tarefa que remove impedimentos, resolve problemas, tem um programa de acção que encontramos, no interior da relação intrínseca com o mundo o sentido do nosso envolvimento e da nossa implicação no mundo.

A disciplina a haver chamava-se tanthrôpeia: as coisas que dizem respeito ao ser humano. E o que não lhe dirá respeito?

 

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