Francisco António Ricarte,  arquitecto e fotógrafo: “Fotografo o que sinto sobre o que vejo”

São 60 imagens em livro, 22 das quais estão expostas na Creative Macau até ao próximo dia 17 de Março. “Somewhere” é o nome da exposição de fotografia que traduz o sentimento de Francisco António Ricarte. Arquitecto de profissão, Ricarte vê na fotografia a sua forma de expressão

 

O que é que vemos em “Somewhere”?

Começa por ser o resultado de uma série de anos em que me fui dedicando a uma paixão que tenho desde a juventude, que é a fotografia. Sempre foi uma área que me fascinou e à qual fui, paulatinamente dando uma série de visões. Não num espírito de fotografia de retrato, mas sim de imagem que traduza algo mais do que aquilo que é uma visão imediata. A minha preocupação é ter a fotografia como uma oportunidade de expressar algum sentimento, alguma visão das coisas que me rodeiam, que me cativam, que me motivam mais. A fotografia é o corolário dessa oportunidade. A de mostrar qualquer coisa que vejo dentro de mim. Não procuro um retrato muito fiel de uma realidade, mas encontrar uma tradução de uma visão sobre determinados aspectos que me sensibilizam. No fundo, o que tenho nas imagens de “Somewhere” é a oportunidade de expressar essa visão, essa percepção.

Fala na apresentação do livro, de mostrar o que está dentro.

Tal como Caspar David Fredrich nos fala em relação à pintura, o mesmo pode ser dito com a fotografia: “Não fotografamos o que está diante de nós, mas o que está dentro de nós”. Fotografo o que sinto sobre o que vejo.

Que sentimentos encontramos?

São emoção sobre uma alma interior dos sítios. Por defeito de profissão sou bastante sensível aos locais, ao que nos podem conferir e da forma como nos identificamos com eles. A minha preocupação foi essa, o que senti nesses locais, através da vibração dos lugares, das cores, da ambiência e do silêncio. Muitas destas imagens traduzem o silêncio que nos transporta para alguma coisa mais do que aquilo que lá está.

Francisco Ricarte

Porquê o nome?

“Somewhere” porque é uma exposição que não é sobre uma determinada realidade. Tem algumas imagens de Macau mas não é acerca da região nem sobre a Ásia em especifico. Não foi minha preocupação dizer que as imagens eram de determinado local. São emoções. Encontro no fotografia uma possibilidade de me expressar.

É arquitecto. Há alguma influência desta área nas suas imagens?

Nestas imagens procurei, de forma deliberada, fugir um pouco àquela grande temática da arquitectura que se refere a uma realidade física construída, com linhas verticais, horizontais, oblíquas, etc. Tentei sair dos sistemas de composição que são bastante caros aos arquitectos e para os quais também sou sensível. Mas nesta série fujo a essa temática de modo a fazer quase um desafio a mim próprio e procurar uma outra realidade. Trago esta realidade através de dois processos. Um primeiro que é o acto de fotografar, ou seja o acto de seleccionar determinada visão em detrimento de outras, e o segundo aspecto tem que ver com a própria revelação dessas imagens, ou seja trazer à luz uma realidade bruta. A ideia não é alterar a realidade em si mas antes melhorar a realidade que me despertou a atenção, da mesma forma como há muitos anos fazia fotografia analógica, a  preto e branco. Mais não é do que mais uma vez, traduzir uma visão pessoal. Nestas imagens o sistema de composição é muito importante o formato quadrado é exemplo disso. Todas as imagens são coloridas e por razões estéticas cheguei à conclusão que muitas vezes quando olhava para uma imagem vertical ou horizontal via áreas acessórias, não determinantes em relação àquilo que queria mostrar. De uma forma natural cheguei ao formato quadrado.

É o resultado de dez anos de imagens. Como é que foi o processo de selecção?

Teve dois processos. São dez anos de atenção perante determinadas realidades paisagísticas em oposição à matéria edificada. Mas por outro lado, sem ter uma consciência muito plena quando comecei a fotografar, fui captando várias coisas e quando comecei, há cerca de dois três anos, a pegar na edição das imagens a selecção foi acontecendo de uma forma natural. A série expressa-se num livro com 60 fotografias e destas 60 estão 22 expostas na Creative Macau como uma espécie de síntese. As imagens expostas são fotografias de grande dimensão. Acho que a dimensão é também uma parte importante da percepção que quero transmitir. Claro que muitas vezes sou confrontado com os limites técnicos na medida em que há imagens que não resultam em formato tão grande. Mas as coisas de forma natural chegaram à selecção final. A selecção é um exercício de depuração. A Clarice Lispector tem uma frase que me pareceu apropriada para este processo e que aproveitei para o texto de apresentação: “É realmente complicado fazer coisas simples”. Muitas vezes quando vemos grande complexidade nomeadamente nas artes plásticas, o exercício de depuração é muito difícil e é quase uma nova descoberta da imagem.

Falou do silêncio. Tem aqui alguma imagens feitas em Macau. Conseguiu encontrar o silêncio no território?

Sim, ainda consegui. O silêncio é conferido através da luz. Podia até estar um ambiente ruidoso mas quando vi o que vi, a situação isolou-se, autonomizou-se e conferiu a aquele momento de silêncio. Este silêncio está subjacente a todas as fotos. Quando determinado momento me aparece, é como se tudo à volta se calasse e só aquele momento me falasse.

A vinda para Macau mudou a sua percepção do mundo?

Sim, completamente. A vinda para Macau correspondeu a um desafio profissional, mas esse desafio teve um corolário de uma nova visão do mundo, daquilo que nos rodeia. Aqui tudo é muito diferente e, de uma forma geral, ou gostamos ou odiamos. No meu caso, senti-me imediatamente bem. Consegui adquirir essa capacidade de olhar e de ir apreendendo esta realidade física, cromática, de sons e de cheiros. Tudo isso que nos vai marcando e que muitas vezes nos obrigada a ter o tempo acelerado. O tempo acelerado é muitas vezes este fascínio que nós ocidentais temos perante a apreensão de uma realidade quotidiana com que nos vimos confrontados e é com ela que estamos sempre a aprender e a olhar de outras formas. Isso é fascinante. Macau contribuiu muito para olhar de outra maneira. Foi uma oportunidade fantástica que agarrei e que me ajudou sob o ponto de vista da percepção e dos sentimentos. Mas não só me ajudou a ter uma visão do que era novo como também a olhar com outros olhos para aquilo que nos é já velho no sentido do que já estamos habituados, quer seja sob o ponto de vista da realidade portuguesa, quer seja sob o ponto de vista de uma realidade física ocidental europeia. As formas de lidar com estas realidades são diferentes. Foi precisamente essa nova visão que me ajudou a construir muito esta percepção que agora tenho e que penso que não seria possível sem a vinda para Macau e sem a experiência do Oriente. Não seria possível porque, apesar de não serem imagens especificamente do Oriente, traduzem a dupla visão do que é novo e velho no nosso mundo, do que é já sedimentado mas que, com o novo se reinventa também.

Francisco Ricarte

É um amante de arte em geral. 

Preocupações estéticas sempre tive, sob o ponto de vista das manifestações artísticas e culturais. É uma coisa que me tem sempre motivado ao longo dos anos e, felizmente, o Oriente tem-me ajudado a profundar esta vertente e este gosto. Tenho interesse e não sou capaz de deixar de ir a uma exposição ou um espectáculo. É uma questão que me motiva sempre. Por paixão e tendo um pouco mais de capacidade económica posso por vezes adquirir algumas peças, nomeadamente de fotografia. Mas diria que a minha principal aquisição e que nunca deixo, são os livros. Ando sempre com eles. são uma coisa da qual não me consigo desapegar.

Quais os seus escritores favoritos?

Há tantos. Não quero ser injusto para com nenhum mas o Sebald é um deles. Há vários livros dele imprescindíveis: “Austerlitz”, “The Rings of Saturn”, “Campo Santo” (poesia), etc.).​ Foi um escritor que me deu a volta à cabeça precisamente por ter uma realidade muito gráfica. Muitos dos livros que ele tem são obras em que a história é acompanhada de pequenas imagens. É um escritor que tem uma narrativa como as cerejas. Já escritores de língua portuguesa, gosto muito do Agualusa. Mas há tantos. Gosto também muito de poesia. Por outro lado, também não posso passar sem música. Acho que ainda faço parte de uma das últimas gerações que compram CDs, pelo objecto e pela qualidade sonora. O MP3 não me convence. Comprar um livro ou ver um concerto são actos criativos para mim. Não me coloco na posição de mero espectador mas tento colocar-me numa posição que me dá uma determinada viagem. A fotografia é onde tenho a capacidade de pegar num instrumento, numa matéria bruta e fazer alguma coisa.

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