h | Artes, Letras e IdeiasConversão e Existência Paulo José Miranda - 30 Jan 2018 [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]onversão é uma palavra importante no Novo Testamento, que tem a sua etimologia no grego clássico, epistrophe, de onde é original a palavra. Por outro lado, há uma outra origem para a palavra, também no grego: epi + stroph. “epi” é uma preposição que quer dizer “acerca de” ou “em volta de”, ou “sobre”. E este “sobre”, que muitas vezes pode ser sinónimo de “acerca de”, aqui não encontra a sua sinonímia. “Sobre”, aqui, não acusa apenas algo em relação a algo, como o “acerca de”, é algo acerca de algo, mas acima do algo a que se refere. “Sobre”, aqui, quer dizer “ver de cima aquilo de que se fala”. Falar “sobre” alguma coisa é falar de cima acerca dessa coisa, isto é, é falar com conhecimento. Mas este “de cima” implica necessariamente um “ir acima”; um ir para cima e neste subir ver aquilo de que se fala. “Sobre” é, assim, subir alguma coisa para ver melhor uma outra. Por isso “conversão” traz duas coisas distintas: traz um sujeito a dirigir-se para um objecto e uma identidade subindo para avistar melhor outra. Converter-se é ver melhor o ser humano. É este o sentido que encontramos no Novo Testamento. Mas aqui esta visão é concedida pela Graça de Deus e não por um esforço humano. A conversão rompe com o anterior modo de ver, com o anterior ponto de vista de onde se olhava o humano, de onde se olhava a vida e, por conseguinte, representa uma catástrofe com todos os pontos de vista anteriores. Veja-se o exemplo da fervura da água para explicar o que seja isto, uma catástrofe. Durante um determinado tempo, sob o efeito do calor, a água vai aquecendo, aquecendo, aquecendo, isto é, ela vai aumentando de temperatura, mas mantendo sempre a sua qualidade líquida, a sua identidade. Não obstante, ao chegar ao grau 100, produz-se uma catástrofe. A água deixa de ser água para ser gás. A água deixa de ser ela mesma, deixa a sua identidade para ser uma outra coisa. A água vai ficando mais quente (mais forte, se quiséssemos moralizar) até ao grau 99, mas milésimos de segundos depois o seu carácter líquido desaparece para dar lugar a outra coisa, a uma outra identidade. É também assim que Saulo se transforma em Paulo. Através de uma catástrofe, Saulo transforma-se em Paulo. Não é a visão de Cristo na estrada de Damasco que opera a catástrofe, mas sim a entrada de Ananias, já em Damasco, com Saulo acamado e cego, que o faz passar a ver. O ponto de fusão, o ponto de catástrofe de Saulo chama-se Ananias, o seguidor de Cristo, cuja presença em frente a Saulo lhe restitui a vista que este perdera ao ver Cristo. Mas a primeira conversão verdadeira, catastrófica, de que temos conhecimento na história do Ocidente é a de Abraão, tal como Kierkegaard nos mostra no seu livro Temor e Tremor. Em que consiste esta conversão de Abraão? Analisemos, seguindo o génio de Kierkegaard. O conceito fundamental na conversão de Abraão é o paradoxo. Que é um paradoxo e como é que ele acaba por dar conta do que acontece na vida de Abraão? A história vem escrita na bíblia e, segundo Kierkegaard, não tem sido realmente lida. Pois aquele que ler realmente a história de Abraão só pode sentir terror. Um terror enorme por aquele gesto, um terror enorme pelo que acontece àquele homem. E o que acontece, que até os leitores mais fieis não vêem? Em idade muito avançada, Deus concedeu a graça a Abraão de sua mulher dar à luz um filho seu, Isaac, único da longa vida deles. Poucos anos depois, Deus pede a Isaac que o sacrifique, que suba a montanha com ele e, aí, o sacrifique como a um cordeiro. Abraão, ao invés de rejeitar o pedido de Deus, ou de perder a sua fé, aceita aquele pedido, aceita realizar o pedido de Deus, que sacrifique seu filho Isaac. O que está aqui em causa é uma catástrofe. Não devido ao pedido de Deus a Abraão, mas devido a este não tê-lo rejeitado. Esta não rejeição de Abraão coloca-o num patamar completamente diferente de todos os outros homens, um patamar diferente dele mesmo até então. Abraão deixa de fazer sentido para os outros humanos, isto é, à luz da lei que rege as vidas humanas o gesto que Abraão aceita levar a cabo deixa de fazer sentido. Abraão deixa o ponto de vista ético para entrar no ponto de vista religioso. O exemplo que Kierkegaard dá em relação a esta catástrofe é o gesto de Agamémnon, ao sacrificar sua filha Ifigênia. Agamémnon, contrariamente a Abraão, nunca deixa o ponto de vista ético, pois ele sacrifica a sua filha pela cidade, pela Ática, pelo seu povo, pela honra do seu povo. O sacrifício de Ifigénia, exigido pela deusa Ártemis, é um gesto ético e não religioso, um gesto compreensível à luz do humano, pois os guerreiros só poderiam partir e lavar sua honra se ele sacrificasse a sua filha. Assim, tal como Kierkegaard escreve, Agamémnon troca uma ética por outra. A cidade compreende-o. Mas ninguém pode compreender Abraão. Quem pode compreender um homem que sacrifica o seu filho mais querido, o seu filho único? Quem pode compreender que alguém escutou Deus pedindo isso? Esta é a grande tragédia – é este o termo que Kierkegaard usa – da vida de Abraão. Literalmente, ele vê-se afastado do humano tal como o conhecia até então, até àquela sua catástrofe. Este é o paradoxo: ficar só e com Deus. Só para os humanos e pleno para Deus. Mas qual o sentido da conversão, alcançar o paradoxo, se não se for religioso? Fora do ponto de vista religioso, um dos exemplos mais conhecidos do paradoxo é o que é enunciado em Ecce Homo por Nietzsche: “tornar-me naquilo que sou”. Repare-se bem no escândalo da frase. Mostremos então o seu paradoxo. Tornar-me naquilo que sou é, antes de mais, deixar de pensar em Deus. Tornar-me naquilo que sou é, antes de mais, tornar-me humano. A este tornar-se humano, Nietzsche chamou de übermensch, o sobre-humano, de modo a distingui-lo do deteriorado humano, agarrado às saias da sua mãe judaico-cristã. Este sobre-humano é, obviamente, aquele que se converte, aquele que caminha montanha acima alargando o seu horizonte sobre o humano – alargando o horizonte de seu coração, diria São Paulo. Mas o sobre-humano não alarga o seu coração, alarga a terra, a natureza, isto é, restitui a natureza ao humano, a natureza perdida na religiosidade judaico-cristã. O sobre-humano sobe a montanha à procura de si, procurando tornar-se nele mesmo, tornar-se naquilo que ele mesmo é. Sobe à montanha para deixar Deus e regressar à sua natureza, à sua humana condição. Sobe a montanha para, nessa caminhada, ir despindo tudo aquilo que quiseram que ele fosse e não é ele, todo o excesso de alteridade que o impede de se ver a si, de se ser a si. O sobre-humano alarga o humano. Mas o que é o sobre-humano? Aquele que cria os seus próprios valores, aquele que não segue o que já encontrou quando nasceu. Nos textos de juventude, Nietzsche usava o termo génio, para designar o que mais tarde designou por sobre-humano. Ter isto bem presente é importante para que se entenda o que Nietzsche tem em mente quando diz übermensch, pois sobre-humano não é outra coisa senão um humano criador, um humano com capacidade de elevar o humano, um humano acima da esterilidade de não fazer melhor. O sobre-humano está imerso na sua cultura e na criação dela. Por conseguinte, tornar-se naquilo que se é, é despir-se de tudo o que nos foi imposto, de tudo o que não somos nós e criarmos nós mesmos este nosso nós. Tornar-me naquilo que sou, não é voltar a ser quem fui, mas quem nunca fui ainda. Quem nunca fui, não porque não posso ser, mas porque não me deixam ser, e eu deixo que assim seja. Tornar-me naquilo que sou é libertar-me. Aquele que se converte, liberta-se. Converter-se é libertar-se. Libertar-me da morte, representada pelos valores judaico-cristãos e da filosofia idealista alemã, para assumir plenamente a vida, a vitalidade da vida, que nunca pode ser conceptual, mas estética e prática. A vida é apreciação e construção. Muitos séculos antes, Platão entendia também que “tornar-se naquilo que se é” era uma libertação. Uma libertação do fundo da caverna, onde o nosso conhecimento das coisas não passavam das sombras que víamos projectadas nas paredes através da luz das fogueiras. Para Platão, libertar-se era libertar-se do jugo dos sentidos. Não só dos sentidos, mas também das opiniões, da doxa, libertar-se de tudo o que não dê um conhecimento seguro acerca de nós e das coisas. Por conseguinte, em Nietzsche e Platão estamos perante a mesma necessidade, a mesma urgência de libertação, apesar das suas hermenêuticas antípodas. Para Nietzsche o humano tem que se tornar sobre-humano, isto é, tem de se libertar das ideias, tornar-se natureza e alargá-la, alargar o fazer e a apreciação desse fazer, isto é, alargar a criação. Para Platão, o humano tem que se libertar do jugo dos sentidos, do jugo daquilo que parece ser, mas não é, como ele mesmo escreve no seu livro Sofista. Podemos afirmar sem medo algum de errar que, independentemente das hermenêuticas antípodas levadas a cabo para a libertação do humano, esta libertação é tanto necessária a Platão quanto a Nietzsche. Parece que eles discordam em tudo, menos em que o humano nasce escravo e precisa de se libertar. E não é também escravo, para o cristão, todo aquele que não vê a sua própria vida em Cristo, todo aquele que não vê a sua própria vida para além de si mesmo, para além da sua própria vida, como se a sua vida Real e Verdadeira estivesse para além da sua vida? Apressadamente poderíamos ser levados a pensar que o sentido da vida humana encontra-se na fuga, que existir é fugir. Poderíamos ser levados a pensar que a vida humana é fugir de si própria para se encontrar verdadeiramente em si. Mas fuga pressupõe algum medo, e nesta catástrofe há, tínhamos visto antes com Abraão, um ver acima do medo que se sente. Um ver acima do terror que a acção que nos é pedida causa. Pois fugir e libertar-se não são da mesma ordem de significados. Aquele que foge nunca se encontra. Aquele que se liberta encontra-se a si mesmo. Aquele que é livre não precisa de fugir. Podemos falar, recuperando conceitos anteriormente usados, que a vida humana só encontra o seu sentido pleno se se converter, isto é, se se libertar daquilo que ele julgava que o mundo e o humano eram, para passar a ver como o mundo e o humano são. No fundo, converter-se é passar a ver. Converter-se é deixar de ser cego. Com esta imagem da cegueira, iniciamos agora uma análise do convertido mais famoso da história do Ocidente: São Paulo. É conhecida a história. Seu nome era Saulo, era judeu, fazia parte da nobreza e era um fervoroso perseguidor de cristãos. Um dia, na estrada de Damasco, uma luz intensa ilumina o céu, o cavalo empina-se, fazendo-o cair. Cristo surge-lhe no céu falando com ele, perguntando-lhe porque razão ele O perseguia. Ele cega e a cura da sua cegueira é-lhe revelada por Cristo: Saulo só passaria a ver quando passasse a vê-Lo, a Cristo, como seu Senhor. Esta “cura” aconteceria através da visita de um dos fiéis de Cristo, já em Damasco, Ananias. Temos aqui duas realidades que parecem antagónicas: por um lado Saulo cega e deixa de ver, por outro, para passar a ver tem de reconhecer em Cristo o seu senhor. Ou seja, para voltar a ver tem de se tornar escravo. Mais: tem de se oferecer ele mesmo como escravo. Para que melhor se compreenda o que aqui está em causa, façamos uma digressão no caminho. Aquilo que, antes de mais, define o ser humano é o tempo. Tempo é o que se acaba quando acabamos e o que começa quando começamos. E, na medida em que nós somos tempo, o emprego que fazemos deste é aquilo que somos. Definimo-nos pelo tempo que somos, isto é, pelo que fazemos nesse tempo que somos. Dizer que tempo é dinheiro é reduzir a nossa vida, o nosso tempo não apenas a uma coisa, mas a uma só coisa. Mais: é reduzir-nos a coisa. Por outro lado, aquele que usa o seu tempo, que se usa a si no tempo dos outros, na vida dos outros é aquele que está afectado pelo tempo dos outros, pelos outros, isto é, aquele a quem a vida dos outros é tão ou mais importante do que a sua. A esta afectação São Paulo chamou, em grego antigo, de ágape. Ágape teve a sua tradução latina na palavra caritas e chegou até nós como caridade. Assim, caridade não é dar esmola a outrem, mas tempo a outrem. Caridade é darmo-nos ao outro, darmos o nosso tempo ao próximo. Quem se dá ao outro, dá-se por gosto. Como diz a expressão portuguesa: quem corre por gosto não cansa. Quem se dá ao outro não é escravo daquele a quem se dá. Dar-se ao outro, liberta. Se para Nietzsche a libertação era libertarmo-nos das ideias que nos tinham imposto, e para Platão libertarmo-nos dos sentidos e das opiniões, para Cristo a libertação é darmo-nos aos outros. A libertação é, por conseguinte, libertarmo-nos de nós próprios e darmo-nos àqueles que amamos. Darmo-nos, dar o tempo que somos e temos a quem gostamos, é libertarmo-nos de nós mesmo, libertarmo-nos da caverna onde vivíamos ou dos ideais pré-fabricados que nos tinham imposto. Parece um paradoxo e é: libertar-se é sair de si. É quando vê isto, que Saulo compreende isto. Muda de nome, para Paulo, e dedica o seu tempo todo àquele que ama: Cristo. Dar-se a Cristo é, para Paulo, libertar-se. Aquele que se liberta de si mesmo é o humano. Libertar-se daquele que se era, que não nos deixava ver quem somos.