h | Artes, Letras e IdeiasA última garrafa (Num consultório privado) Paulo José Miranda - 9 Jan 2018 [dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]AUL: Então o que é que está em causa, doutor? DOUTOR: Remédio. O que está em causa é o remédio. Os outros encontram-no e você não. É isto que está em causa. RAUL: Não é que não tenha tentado. DOUTOR: Será? RAUL: Porque dúvida? Julga que… DOUTOR: Se quer mesmo saber, você parece-me demasiado decente para ter remédio. Para se ter realmente esforçado em encontrar um. RAUL: Não estou a compreender. DOUTOR: Está. Não quer é compreender, que é diferente. Meu amigo, você não tem qualquer problema com a vida. Você não tem é vida. Vive, tem responsabilidades, como já disse, mas, no fundo, está à parte dela. Em relação à vida, você está de fora. Porque não se quer sujar. Não é possível viver e não se sujar. Há que casar, há que trair, há que ser encornado, há que conspirar, aqui e ali, contra este ou aquele, há que dizer mal. Sou capaz de jurar que você nunca ganhou sequer um escudo ilícito. Isso não é viver. Você trabalha em contabilidade, já alguma vez se enganou propositadamente? RAUL: Julgo que o doutor está a confundir a vida com o mundo. DOUTOR: Estou? E qual é a diferença, é capaz de me dizer? RAUL: O mundo é o mundo, a vida é a vida. São palavras diferentes. E as palavras devem ter alguma razão. DOUTOR: Pois para resposta não está mal. Fica-se na mesma. RAUL: Olhe, posso dizer-lhe que o mundo não me dói, e a vida sim. O que se passa no mundo, o que as pessoas fazem, não me causa o menor abalo. Mas a vida é-me insuportável. Falava em decência, mas julga que me importa a fome que há no mundo, as guerras que o estão a destruir? Julga que me importa a miséria nas ruas, a violência, a droga? Nada disto me causa o menor abalo, doutor. Mas a vida dói-me. DOUTOR: E importa-lhe a miséria que habita cada um de nós, sem excepção? RAUL: Não, doutor. Porque isso é luxo que eu não tenho. Preocupar-se pela miséria do ser humano é um luxo. Como também é um luxo não se preocupar com nada, viver constantemente em diversão. Infelizmente, não me posso dar a esses luxos, porque a vida dói-me muito, doutor. (silêncio e, entretanto, o doutor serve mais whisky) RAUL: Obrigado. DOUTOR: No fundo, o que me está a dizer é que não é humano. RAUL: Talvez, doutor. A minha doença não me permite sê-lo. Mas não esqueça que essa ideia de humano é formada por os que não estão doentes. Talvez para os sãos, os que adoecem e recuperam, os irrecuperáveis não sejam humanos. Já pensou nisso? DOUTOR: Não, ainda não tinha pensado nisso. Talvez tenha razão. Talvez seja necessário pensarmos de novo o que é ser humano. RAUL: Talvez, doutor. DOUTOR: Por outro lado, pensar que algum dia se irá aceitar a doença como parte integrante do humano é ingenuidade. A doença é um intervalo na vida. RAUL: Na vida, não, doutor. A vida também pode ser uma doença, como pode constatar por mim. DOUTOR: Talvez então a doença seja um intervalo na existência, um intervalo no modo como se entende o mundo. (com ar de ausência) Sim, talvez seja mais isso. (regressando do seu curto estado de ausência) Mas está agora a compreender melhor o ódio que se tem aos médicos, não? RAUL: Sim… Até onde me pode ser possível, porque não tenho muita experiência acerca disso. DOUTOR: De qualquer modo, não diga ainda que eu constato a sua doença. Vamos tentar. Mas até agora… RAUL: Quer dizer que ainda continua a não acreditar no que lhe digo. DOUTOR: Não se trata disso, homem! Antes de mais acredito que não me está a mentir. Depois também acredito que me está a relatar algo que, embora estranho, não parece destituído de sentido. Ou você julga que se o julgasse doido ainda estava aqui a ouvi-lo? Pode não parecer, mas tenho mais que fazer. (pausa) Preciso é de compreender, percebe? RAUL: Perceber, percebo, doutor. Mas o problema é que julgo que está a ir pelo lado errado. Isto não se compreende. DOUTOR: A ser assim, estamos mal. Mas, seja como for, se conseguir compreender que não se compreende já é alguma coisa. RAUL: E, para isso, precisa de tempo. DOUTOR: Exactamente! Tempo. RAUL: Está a sugerir que venha aqui com regularidade e, de cada vez, passemos uma ou duas horas a conversar até que possa compreender que não compreende? E, entretanto, continuo a sofrer. DOUTOR: Bem, meu amigo, convenhamos que não lhe restam muitas outras saídas. Por um lado, você não se quer matar e, por outro, eu também não o mato. Não o mato é como quem diz, não lhe dou o comprimido que necessita para morrer em paz. (não deixando de falar, levanta-se e dirigi-se à estante com livros) Não vamos estar com ilusões. Qual era o médico que estaria interessado em compreender o seu problema e em ajudá-lo? Enviava-o para a psiquiatria ou, no melhor dos casos, para a neurologia e já estava. Passava a bola a outro, está a ver? Mas eu não. Eu quero realmente compreendê-lo. Quero compreender o que se está a passar consigo. Não me parece que tenha muitas alternativas, amigo. De qualquer modo, se quiser, se assim o entender pode procurar outro médico. Está à vontade para o fazer. Aliás, uma segunda ou terceira opinião será sempre melhor. RAUL: Doutor, eu não quero opiniões, quero um comprimido. Quero morrer, doutor. Agora diga-me com sinceridade. Julga que tenho realmente hipóteses de receber esse comprimido, ou não? (regressa à mesa com um livro na mão e pousa-o sobre a mesa) DOUTOR: Vamos a ver. Vamos a ver. RAUL: O problema, doutor, é que não tenho muito tempo. Não quero continuar a sofrer mais, nem quero morrer coberto de dores. DOUTOR: Calma, amigo, não desespere! Para já, isto vai bem encaminhado. RAUL: Isto o quê, doutor? DOUTOR: O seu pedido. RAUL: Vai então dar-me o comprimido? DOUTOR: Calma! Não disse isso. RAUL: Então o quê, doutor? (silêncio) RAUL: Responda-me, por favor! DOUTOR: (procurando uma página do livro) Você costuma ler? RAUL: Não, nem por isso. DOUTOR: Se não se importar, gostava de lhe ler uma passagem deste livro. RAUL: Faça favor! DOUTOR: «O único problema filosófico é o suicídio. (…)» Conhece o autor? RAUL: Não. Quem é? DOUTOR: Camus. Albert Camus. Escritor e filósofo francês, que morreu ao volante do seu automóvel em 1967 com 51 anos. RAUL: E o que é que isso tem a ver para a nossa conversa, doutor? Já lhe disse que não me quero suicidar. DOUTOR: Precisamente por isso! Você não quer viver, mas também não se quer matar. É um problema novo, homem. Compreende o que lhe quero dizer? RAUL: Não estou bem certo disso. Mas também é coisa que não me interessa. Já lhe tinha dito anteriormente que não me interesso por filosofias. DOUTOR: Mas o que é certo é que você, tanto quanto sei, e quer queira quer não, está a abrir um precedente para a compreensão do homem e das suas relações com a vida e a morte. RAUL: Pois, pode até ser. Mas não é coisa que me interesse, doutor. Aquilo que me interessa… DOUTOR: Já sei, homem! O que lhe interessa é o comprimido. RAUL: E, então, sempre mo vai dar, ou vai escrever um livro acerca de mim?