h | Artes, Letras e IdeiasParty Girl António de Castro Caeiro - 5 Jan 2018 [dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] passado atravessa-se-nos. Já não é como dantes. Outrora, as memórias rebentavam como bolhas de água Castelo. Podiam ser muitas de uma só vez, mas depressa se acalmava a efervescência. O presente acabava por se impor no seu caudal. Nem a frescura ficava na cara. Agora, por vezes, é o contrário. Parece que uma memória assome o horizonte e nos expulsa do presente ou lava o presente para fora da sua eficácia. A memória não é só uma impressão fixa do passado com que ficamos. É afectiva. Vem não se sabe por que motivo. Ou sabe. São histórias passadas, mal concluídas. Não concluídas. Histórias abortadas de desencontros que levam à abominação da desolação. Atiram-nos para o facto bruto, puro e duro de a vida ainda ser e nós temos de continuar, sempre em frente. A afectividade destas memórias fixam-nos numa zona de impacto, numa terra de ninguém. Não estamos já no princípio. Longe disso. E estamos próximos do fim, mas há ainda tempo. Atiram-nos para um terra de ninguém. Este baldio é uma zona de guerra, como vemos nos filmes sobre os conflitos do Médio Oriente. Não percebemos como é que os soldados estão, pelo menos, na sua primeira comissão, muito menos quando cumprem mais comissões do que a segunda. Estamos num cenário de guerra que nada tem que ver com casa. Reconhecemos que os civis, mulheres e crianças, pobres todos eles, estão no meio do conflito e não podem sair dali. O que sucede de extremo com estas aberturas de zonas apocalípticas é que estamos em casa. Nós somos os locais. É aí a nossa casa. Não temos para onde regressar, porque geograficamente, estamos no sítio onde nascemos, vivemos e, em derradeira análise queremos ficar. Só que não podemos ficar num sítio completamente alagado por uma zona de guerra. A guerra é uma metáfora da abominação da desolação. Estamos num sítio inteiramente determinado pelo tempo. Vive-se em condições extremas. Entre picos de adrenalina, eufóricos, e voos precipitados em direcção ao despenhamento. Em nenhum lado é casa. Por todo o lado só há o inóspito. Todos os amigos estão expostos a essa situação radical e extrema. O futuro só traz um único alívio: a inconsciência ou a alteração radical dela. Ou, então, a morte. As memórias afectivas surgem das disposições mais antigas dos tempos. A origem e proveniência dessas memórias é a afectividade. Por isso, não importa bem qual é o seu conteúdo “cénico”, de quem é que nós nos lembramos, que histórias do passado é que vêm até nós. Os conteúdos são sempre totais. Implicam-nos numa relação com os outros, com o meio em que nos encontramos, com a nossa vida na sua totalidade. É a afectividade, o seu carácter emocional que é decisivo. A sua forma é sempre a mesma. É apocalíptica, porque nos revela qualquer coisa de nós na nossa relação com os outros especiais da nossa vida, com o sítio que é casa e deixa de ser, com a vida que é nossa, mas parece que somos expulsos dela. O seu conteúdo é vezes sem conta o das pessoas sagradas das nossas vidas. As pessoas sagradas são as que nos abençoam com as suas presenças, mas são também aquelas que nos danam. O sagrado está em tensão com o profano. Mas o profano, do ponto de vista do sagrado, é um horizonte integrado. “A teologia é séria, o inferno é certamente lá em baixo e o céu é lá em cima” (Rimbaud). E as memórias vêm do passado como tsunamis. Configuram-nos um presente. São saudades do passado. Saudades de um passado perdido, mas não esquecido. Não nos deixam esquecer de si. Ficamos presos delas. O presente é configurado por estas saudades que não sabemos matar. Melhor, a saudade é a falta que se sente. A falta, porém, é permanente. A saudade é permanente. Não podemos dizer exactamente que “temos” saudades. Deveríamos dizer que as saudades nos têm a nós. Nessas alturas a falta é tão constitutiva que não sabemos como podemos sobreviver num outro horizonte afectivo, como podemos ter tempo, sem regressar a outro local. Como pode ser reversível se tudo é irreversível? Como pode ser ultrapassável a vida inteira se é agora e agora é impossível? Como pode haver repetição, se tudo parece ser irrepetível? Hoje, vi-te. E eu como era. Não vejo bem como és. Sei, contudo, bem como sou.