Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasPreparar a Primavera António Cabrita - 28 Dez 2017 24/12/17 [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enho o fôlego curto para as compras, mais curto que a bolsa, que propende à fífia. Mas pelo Natal, antes da minha mulher me pôr a ruminar o anátema, afasto os olhos da décima leitura de As Metamorfoses de Ovídio e tento arrastar-me com alguma fluência pelo tremeluzir das montras. Entramos na Levi’s, onde as malhas respiram até debaixo de água, dou uma concordância silábica a uma cor, a um padrão, porém o que me atrai é reencontrar Leda e saber que um cisne esgaravata em mim para sair. Passamos ao Massimo Dutti, as calças fazem figas para me encontrar, e ao balcão diviso Europa. Sinto-me de imediato um touro de uma coruscante fotogenia. Segue-se a Timberland e os seus botins alinhados como vagens. O jeito voluptuoso com que a rapariga me afeiçoa a calçadeira ao calcanhar projecta-me nas delícias de Io e no secreto miolo das nuvens. Gosto depois de sair para a aragem da rua com as mãos pejadas de sacos de papel e de, observando os gestos inábeis da minha mulher, pasmar com as alegrias da renúncia. E é ao entrar no táxi que invariavelmente me ocorre a máxima da minha avó Judite: «ao pó tornarás, mas antes serás gaiteiro!» 27/12/17 Vou-vos contar o que me levou à leitura. Eu tinha um pai muito severo e muito competitivo. Apesar de pobre estava disposto a tudo para consolidar a formação dos filhos. Quando eu fui para o ciclo preparatório, o meu pai fez comigo um trato em relação ao “quadro de honra”. Se eu ficasse no quadro de honra no primeiro período, ele dava-me cem escudos, muito dinheirinho para a época. E sobre cada ponto que eu tivesse a mais ele acrescentava cinquenta escudos. Ainda hoje salivo a pensar nos cento e cinquenta escudos! No primeiro período andei em velocidade de cruzeiro e tive média de catorze. Lá pude estoirar o dinheirinho, nem imagino em quê. No segundo período acelerei o movimento e tive quinze. No terceiro período entrei em economia de esforço, e pus a velocidade do relaxe e tive média de treze. Resultado, passei com média de catorze. E vai o meu pai pôs-me de castigo os três meses. Os meus amigos passavam com dez, onze, e iam para o Algarve, eu com catorze era remetido ao quarto. Só podia sair meia hora, estritamente para ir à biblioteca buscar livros. E nesses três meses, entre os dez e os onze, acabei por ler o D. Quixote, vários do Dickens, o Defoe, o Marc Twain, o Moby Dick, do Melville. Deste gostei tanto que nunca o devolvi. Quando me exigiam o livro eu respondia, Mandem-me prender. Teve a minha mãe de ir devolvê-lo, cheia de vergonha, seis meses depois. Para o que importa, eu estive três meses retido e só tinha como evasão os livros. Fiquei simultaneamente grato ao meu pai e incapaz de perdoar-lhe. O que aliás deu a tónica da nossa relação futura. Eram estes os livros que lia na juvenília. Nessa altura, era ainda incipiente a indústria do livro infanto-juvenil e a nossa ambição era imitar os adultos e não as crianças. Aliás, em quarenta anos passámos de um estado em que, no dizer do Walter Benjamin, “o racionalismo via o menino como um adulto em miniatura” para uma mentalidade social dominada pela puerícia, e na qual os adultos são a obsolescência residual das indústrias culturais exclusivamente devotadas ao infanto-juvenil e subordinadas aos limites perigosos que hoje fazem da irresponsabilidade um estilo e da imaturidade um género. Mas hoje não estamos aqui para nos queixarmos, mas para contar que a minha filha Jade, de dez anos, ficou radiante no Natal porque recebeu oito livros, e destes, até hoje, dia 27, já despachou dois. E não precisei de a meter de castigo para isso. 28/12/17 Para o Cioran toda a ideia é neutra, sendo o homem que a anima ao projectar nela o seu fogo, as suas expectativas ou demências. E chama a este processo “passar da lógica à epilepsia”. Nunca soube viver sem ser “em epilepsia”, mesmo quando me entretenho a pensar contra mim mesmo, pois pensar assemelha-se a navegar à bolina. E é consequente que o Cioran se compare a Macbeth, apesar, diz, de “não ter cometido qualquer crime”. Sentirá afinidades com a falta de medida a que o poderia empurrar uma Lady Macbeth (a qual, ela sim, se identifica com a ideia neutra que procura a sua encarnação), talvez por reconhecer que há vezes em que a faca nos vem à mão e ficamos atolados numa frágil condição humana, demasiado humana – consciência que também me parece ser a que matizava os estóicos. Contudo, como escrevi num poema, já não acredito como o Cioran que um livro seja um suicídio diferido. Prefiro associá-lo a um plágio do coração. Talvez porque me tornei sensível aos argumentos de Christian Bobin que em La Lumière du Monde (um maravilhoso livro de entrevistas) defende: “o Cioran é um benfeitor e não, como dizem os seus precipitados discípulos, porque ele desencante o mundo, mas porque antes neutraliza qualquer falso encantamento. É alguém que limpa o deserto. Com uma pequena vassoura, ele recolhe todos os resíduos das fáceis consolações, e para mim é depois deste trabalho que começa a palavra verdadeira. Ele faz o trabalho do inverso; ele retira as ramagens mortas: chama-se a isto preparar a primavera”. Preparar a primavera, uma ideia consoladora para os invernos mais agrestes.