Estigmatismos

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma das características dos modernos foi a tendencial afirmação da subjectividade. A descoberta de cada um de nós como sujeitos individuais, mais do que sublinhar a nossa singularidade, é uma forma de atomização. O nosso ponto de vista tal cartesiano é estigmático, monocular, ciclópico eventualmente. Mas mais do que tudo esta operação, nas descrições de Descartes e Kant, é uma revolução, pelo menos no interior do horizonte cognitivo, epistemológico, ou como os antigos lhe chamaram teórico. Esta revolução deve poder restituir-nos o lugar merecido não só no planeta, nem tão pouco só no universo de que há em nós, mas no ser, o que quer que “ser” queira dizer. Eu penso-me a pensar coisas pensadas. O “-me” é o primeiro complemento, directo, “posto” com o “eu” sujeito de “penso”. Todas as coisas são por isso mesmo “pensadas”, particípio passivo, resultante do impacto da acção do verbo sobre as próprias coisas.

A situação não é nova. Um ponto de vista aponta para um alvo, mira-o. O que daí resulta é a distância entre o arqueiro e o alvo. A perspectiva produz o aspecto do alvo: a distância, a localização de arqueiro e alvo, o tamanho aparente do alvo, a configuração geométrica, etc., etc.. Entre a perspectiva e o aspecto abre-se um espaço estrutural, um prisma cónico, no interior do espaço mais alargado que o engloba. Podemos perceber que o modelo do arqueiro que faz mira sobre o alvo é analógico relativamente a todos os nossos objectivos, alvos, metas, propósitos, fins. Há sempre um ponto de vista que abre uma perspectiva que faz depender de si a aparição de uma coisa, que é sempre dada a ver com um determinado aspecto. Mas o aspecto não é uma coisa. De cada coisa tenho apenas o lado dela que está virado para mim e a descoberto. O lado de dentro de cada coisa, o lado de baixo, o lado de trás, as partes que podem estar eventualmente tapadas, nada disso eu vejo. Pomos lá esses lados ocultos e invisíveis, mas não os estamos a ver.

Outra coisa decisiva é que os lados das coisas, que estão descobertos e virados para nós, são sempre vistos pela perspectiva que se abre sobre eles. Se o ponto de vista mudar, muda a perspectiva e assim também se produz uma alteração na morfologia do que estamos a ver. O lado da coisa não é um aspecto. O lado da coisa a descoberto e virado para mim depende de mim para ser esse lado, a descoberto e virado para mim. Se virar uma mesa de pernas para o ar o lado de baixo da mesa, coincidente com o tampo da mesa virado para o chão, invisível e não a descoberto, enquanto olhava para ela há pouco com livros, a taça de café e tudo o que lá se encontrava, passa agora a estar à vista e a descoberto. É esse, agora, o lado visível e a descoberto, quando há pouco estava invisível e encoberto. O mesmo se passa quando pensamos nos lados de uma taça, o lado de dentro e o lado de fora, a sua apresentação côncava para receber o café e a sua apresentação convexa quando a arrumo na prateleira: côncavo e convexo são descrições geométricas de um mesmo objecto, mas são o inverso uma da outra. Uma mesa rectangular surge-me sempre conforme a perspectiva que me abre para ela como um trapézio, escaleno, isósceles, como um losango, mas nunca como um rectângulo. A deformação do aspecto da mesa não é uma deformação da mesa. As deformações são dinâmicas e conformam os múltiplos aspectos que as múltiplas perspectivas podem abrir sobre uma coisa, sobre o mundo envolvente, o milieu, o mundo.

Ao aproximar-nos do que quer que seja, parece aumentar de tamanho. Ao andar de um lado para o outro a parede do lado oposto ao que me encontro aumenta de tamanho, à medida que diminuo e tendo a anular a distância entre mim e ela e quando me viro a parede de onde parti na direcção desta parece menor e aumenta à medida que ando na sua direcção. Se me afastar de autocarro, sentado de costas para o sentido do destino, tudo diminui de tamanho. As bermas da estrada tendem a encontrar-se lá ao fundo, afunilam. O ponto de vista é o de um prisma cónico em que as coisas tendem a convergir para um ponto de fuga, deslizando rapidamente até esse ponto para desaparecerem por serem reduzidas a tal ponto que já não as conseguimos captar pela percepção óptica. Eu vejo-me a ver coisas vistas por mim. Eu penso-me a pensar coisas pensadas por mim.

Mas do ponto de vista mais alargado, percebemos que o mesmo se passa com os nossos objectivos, fins e metas a curto, médio e longo prazo. Os objectivos podem ser precisos e assomarem o horizonte porque os estabelecemos e fixamos. São fixos sempre num futuro. Não existem ainda na realidade, não foram realizados e não foram cumpridos. Mas criam sobre nós já agora uma tensão. Agem retroactiva e retrospectivamente sobre nós. Acendem-nos. Fazem-nos virar para eles. Dirigimo-nos para eles. Prosseguimos na sua direcção. Pode ser beber um café. Quando nos apetece beber um café, surge-nos essa vontade que nasce em nós. Nós não imaginamos a cena ou o conjunto de cenas que nos levam do quarto à cozinha, nem todas as fases do processo que está envolvido no fazer um café. Assim como ninguém quer a coisa projecta-se todo um conjunto de acções implícitas no fazer café que se vão desdobrar numa cadeia ordenada de elos, que têm a sua constituição intrínseca. Levanto-me, caminho até à cozinha, tiro a lata do café do armário, encho a cafeteira de água, ponho o filtro, o café no filtro, acciono o botão da cafeteira, espero que a água seja passada pelo café no filtro, encho a taça com café, deito um farrapo de leite e bebo. O que se passa entre a vontade que me dá de beber café e o momento em que bebo café passou tempo. Estar efectivamente a beber café é atingir o alvo do objectivo “beber café”. Querer beber café é a afectação do ponto de vista que abre uma perspectiva no mundo que constitui um dado auto-biográfico. Se não me apetecesse beber café, ficava sentado onde me encontrava sentado. Não “teria viajado” até à cozinha, não tinha usado o tempo daquela maneira. Não teria bebido café e o dado auto-biográfico teria sido completamente diferente: “passei a tarde a trabalhar e nem sequer me levantei para beber um café”.

Quantas decisões destas tomamos, quantas opções adoptamos entre o sim e o não, entre fazer e não fazer, entre levantar-nos e não nos levantarmos. Ao longo do dia podemos ter 100.000 pensamentos. São muitos segundos por minuto e muitos minutos por horas e horas num dia em que de um momento para o outro, num abrir e fechar de olhos nos pode dar para muitas coisas, nos pode apetecer muitas coisas. Querer ter essas coisas, cumprir objectivos, implica uma alteração do mundo, uma imposição da nossa perspectiva e do nosso ponto de vista que altera até a percepção da nossa casa: ora sentados onde estamos à secretária a olhar para as coisas, ora levantando-nos e afastando-nos da secretária. Vêmo-la mais distante e quando lhe viramos as costas não a vemos nem a parede que lhe serve de fundo. Vemos a porta do quarto e, aberta, o corredor e percorremo-lo até entrarmos na cozinha. E se antes víamos livros sobre a secretária, agora vemos a parafernália toda da cozinha. Se há pouco estava a ler e concentrado, agora a concentração é na tarefa. Posso ainda ter o sentido da última frase lida, mas a minha atenção está toda ela dada ao café. Talvez o nosso ponto de vista não seja estigmático e “eu” e “-me“ e “a mim” elementos complexos de uma lucidez ou de uma mente desdobrada. Veremos.

 

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