MancheteAmnésia António de Castro Caeiro - 1 Dez 2017 [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] vida tal como nos encontramos nela é espontaneamente metafísica. Tendemos a “produzir doutrina” sobre a vida. Temos opiniões fortes sobre o que é. Em cada situação em que nos encontramos, há tentativas e desistências de interpretação do que nos acontece, se estamos bem ou mal, se vamos indo, qual o estado em que nos encontramos, que impressão temos de todo e qualquer conteúdo. Não nos é indiferente percebermos ou não percebermos o que se passa, como se estivéssemos sob uma pressão contínua de saber que se manifesta de forma mais evidente, quando sofremos de incompreensão, não conseguimos perceber o que se está a passar. É o caso, por exemplo, quando não nos conseguimos lembrar de “certas coisas”, de conteúdos específicos como nomes próprios de alguém ou, quando esquecemos “coisas”, tanto e de tal forma que nem percebemos como ficou “apagado da memória”, obliterado, desaparecido. O paradoxo da lucidez humana é que não podemos equacionar logicamente o que é e o que não é com o que existe e o que não existe ou com o que está presente e o que está ausente. Há coisas que nos escapam, sem dúvida, e não nos apercebemos de que nos escapam, pelo menos durante algum tempo. De outro modo, não falaríamos delas. Aparecem num estádio ulterior da vida e percebemos que estiveram inertes e inactivas num qualquer “lugar” da mente. Mas há situações que estão ausentes como um buraco negro visível, tangível. A indeterminação determinável de um nome que não nos lembramos ou da presença emocional com que vivemos um momento do passado. Podemos perceber que nos esquecemos do que acontece não apenas quando fazemos a experiência desagradável de não nos lembrarmos de um conteúdo específico. O meu esquecimento do nome de alguém é o esquecimento inequívoco do nome dessa pessoa e não de outra coisa a respeito dela nem do nome próprio de outra pessoa. Mas o que acontece o mais das vezes é que o presente que se activa na actualidade transita para um reino da alma ou do passado, e esta transição é contínua. A esmagadora maioria dos conteúdos de vida transitam da expectativa mais ou menos activa do futuro para o presente e da vivência mais ou menos atenta do presente para o passado. E no passado moram a esmagadora maioria dos conteúdos vividos, todos os momentos da nossa vida até agora, sem que estejam explicitamente lembrados, em pormenor, isolados uns dos outros, vistos no seu começo, meio e fim. Se nos perguntarem pela banda sonora das nossas vidas, podemos recordar muitos nomes de canções, mas não nos lembramos da esmagadora maioria, o mesmo se passando para os livros das nossas vidas, pessoas que conhecemos, modulações disposicionais, vivências afectivas, estados emocionais, etc., etc.. A perda de actualidade do presente faz que o passado absorva e sugue todas as nossas vivências e a lupa do presente altamente sensível cria o núcleo duro do sentido e deixa tudo o resto para a sua periferia. Assim é quando há dissociação entre o rosto de alguém, outrora agente do fascínio e encantamento e esse rosto fora do sortilégio e do enfeitiçamento. Pode também acontecer que nos lembremos de todo o sortilégio, feitiço, encantamento e fascinação, mas sem rostos. É assim que pode surgir toda uma época da vida, décadas até, a primeira juventude de coração selvagem. E, contudo, nem na altura tínhamos qualquer hipótese de percepção de uma presença contínua da vida na dependência e sob presença do fascinante que propulsionava futuro, abertura, possibilidade. De caminho, há momentos em que nos surpreendemos a ser com o sentido indespedível da actualidade presente. Como foi que a vida veio a dar até esta orla? O que a transformou? Quem eu era e quem eu sou? Vultos do passado ficaram congelados num tempo sem tempo. Aparecem, às vezes, no sonho acordado nas tardes passadas ao largo, como fantasmas que quererão dizer alguma coisa, mas nem sabemos o que por eles sentimos e, por isso, também não percebemos o sentido das suas aparições. Rostos conhecidos e com nomes mas como se fossem completamente desconhecidos. Uma pessoa é a sua aura afectiva, o halo que descontinua o ambiente específico da nossa vida e o altera, a mudança do clima afetivo em que nos conhecemos. E desconhecemo-nos como se tivéssemos sido vítimas de um ataque de amnésia. Não se trata de um apagamento das memórias de longo prazo, dos seus conteúdos. Na verdade, podemos lembrar-nos de tudo, mas como num sobrevoo em que vemos “assim como ninguém quer a coisa” toda a nossa vida e todos os seus conteúdos, mas como se tivesse acontecido a outro, como se não fosse a nossa vida, como se nós fossemos alheios de nós próprios, sem saber verdadeiramente quem somos. Podemos perder memória de todos os conteúdos como quem não sabe dar-lhes um nome próprio e, ainda assim, sabemos quem somos. Saber quem se é, é saber-se como se é, do que se é capaz em situações extremas. É estar exposto à atmosfera rarefeita mas translúcida do sentimento que nos faz sentir ser quem somos. Muitas vezes esse sentimento existencial diz-nos da desorientação e do desnorte, da desistência da espera, de quem não somos quem supostamente éramos para ter sido. A necessidade de memória não dá a entender apenas a necessidade de recuperar o tempo havido. Sem recuperar o que foi, não há orientação possível para o futuro, para o trânsito. A lembrança do passado traz consigo a possibilidade da abertura ao futuro. A presença do passado ausente erige uma possibilidade onde se pode vir a ser. A invocação do passado não é uma invocação do conteúdo vivido, do dado auto-biográfico, mas uma edificação do possibilitante, da esperança sóbria que é dada pela onda espontânea que nos sintoniza a nós no nosso tom, onde aparece o que os outros representam para nós e como eles definem as nossas vidas, a nossa disponibilidade para existirmos com eles no espectro disposicional onde a vida aumenta a sua potência, onde há futuro e não apenas a passagem do tempo de quem ficou para morrer.