Revisitar Rashomon na era dos factos alternativos

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] jovem estonteante da porta ao lado morreu durante a noite. De manhã, a vizinhança reuniu-se para tentar descobrir a causa. Em baixo estão algumas das declarações registadas pela polícia:

– Eu vi-a sozinha no bar ontem ao fim da tarde. Tinha a cara completamente alterada. Deve ter sido intoxicação alcoólica.

– Ela esteve recentemente envolvida com vários homens. Deve ter sido um crime passional.

-Cruzei-me com ela no hospital a semana passada. Acho que foi fazer um teste ao HIV.

-Há anos que sofria de depressão. Acabou por se suicidar.

A verdade? Tinha morrido num acidente de viação.

A verdade só pode ser uma, mas a sua narrativa pode acabar por ser uma mentira. A ficção é a prova de que uma mentira tão elaborada e refinada pode ser tida como verdade. Este fenómeno é conhecido por Rashomon, cujo nome deriva do conto homónimo, passado ao cinema em 1950. Quando alguém Rashomina é porque não pode ter a certeza do que está a dizer.

Akutagawa Ryunosuke (1892-1927) publicou Rashomon em 1915.  Ficou conhecido como um “génio com ideias bizarras”, ideias que serviam para “escavar” a natureza humana e exprimi-la de forma única plena de interioridade e inteligência. Rashomon dá-nos uma alternativa moral.

O conto tem sete protagonistas que se encontram para resolver o assassínio de um samurai.

  1. 1. O lenhador foi o primeiro a encontrar o corpo do samurai “com uma faca enterrada no peito e folhas de bambu ensopadas em sangue à volta”. Perto do corpo encontravam-se cordas e um pente de mulher. O lenhador declarou-se inocente.
  2. 2. O monge contou aos outros que há poucos dias atrás tinha visto o samurai a cavalo na companhia de uma mulher. O monge declarou-se inocente.
  3. 3. O carcereiro informou que tinha prendido o ladrão que cometera assassínios por luxúria. Tinha morto mulheres e raparigas de forma extremamente cruel. A seu ver, este assassinato devia estar relacionado com o célebre ladrão.
  4. 4. A mulher idosa assinalou que o falecido era seu genro. Tinha um nome e 26 anos de idade. Era bondoso. Estava casado com a sua filha de 19 anos, uma mulher dura.
  5. 5. No final, o célebre ladrão confessa que matou o samurai porque o viu violar a mulher. Nessa altura decidiu matá-lo e casar-se com a viúva. Contudo, deu-lhe uma hipótese e desafiou-o em duelo. Lutaram durante 23 rounds até finalmente o aniquilar. Mas agora a mulher fugiu, deixando para trás o seu cavalo a mordiscar a vegetação da orla do bosque.

Nesta altura o leitor fica tentado a acreditar que o ladrão está a falar verdade. MAS,

  1. 6. A mulher aparece, e conta que o ladrão a violou e obrigou o marido a assistir. Profundamente envergonhada, agarrou na sua faca e matou o marido. O relato da mulher contradiz obviamente o do ladrão.
  2. 7. Surge então o fantasma do morto e conta que a mulher era maldosa e que contratou o ladrão para o matar. O ladrão suspeitou dos motivos da mulher e mandou-a embora. Ela aproveitou a oportunidade para fugir. A seguir o ladrão perguntou ao samurai o que queria que ele fizesse com a mulher. Deveria matá-la ou deixá-la ir? Comovido com a atitude do ladrão, o marido prontificou-se a perdoá-lo.  Finalmente o ladrão decidiu partir. O samurai resolveu matar-se com a faca que a mulher tinha deixado ficar para trás.

Akutagawa desafia a noção da “verdade única”. Em Rashomon a verdade encontra-se escondida no epílogo. No epílogo os mentirosos prestam juramento. E é aqui que começam a acreditar na sua própria realidade fabricada. 

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