h | Artes, Letras e IdeiasRicardo Ben-Oliel (Contista que vive há 40 anos em Israel” Paulo José Miranda - 4 Jul 20175 Jul 2017 Ricardo Ben-Oliel [dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]icardo Ben-Oliel é aquilo a que podemos chamar de um autor tardio. Se não na escrita, pelo menos na publicação. Em 2013, e já com mais de sessenta anos, publica na Abysmo o seu primeiro livro, um conjunto de contos intitulado Silêncio. Com formação em direito e muitos anos de estudo de música e piano, aos vinte e oito anos de idade muda-se de vez para Israel onde passa a viver e a exercer o cargo de professor universitário de direito, até aos dias de hoje. A sua escrita está impregnada do lugar onde habita, contrariamente a muitos escritores emigrados ou exilados, que tantas vezes escrevem tão-somente acerca de onde vieram e não acerca de onde estão. Não se veja, contudo, nesta minha afirmação uma qualquer crítica velada, mas tão somente uma constatação, até porque não sabemos o que seja melhor para aquele que escreve e para o leitor, se uma escrita acerca da prisão de onde se fugiu ou uma escrita acerca da prisão a onde se chegou. Assim, Ricardo Ben-Oliel neste seu segundo livro – O Quarto Trancado Onde Nem A Morte Entrava – e apesar de ter dois contos, os primeiros, que são passados em Portugal, remete-nos para um livro tão não-Ocidental como o seu primeiro livro, Silêncio, onde se lia à página 26: “Muito gosto eu dessas largas avenidas que há pelas capitais europeias. Sobretudo numa manhã límpida e azul. // A vida parece tornar-se, aí, mais fácil e leve. Prometedora. Alegre. São as esplanadas, os arvoredos, as largas montras envidraçadas a oferecerem um quase-tudo. Há um luxo disseminado, uma conjugação de esforços a criar um cenário optimista, uma risonha mentira consensual.” Trata-se efectivamente de uma visão de alguém que vem de fora da Europa, da calma e segura Europa das últimas décadas, das décadas do pós-guerra. E tal como algumas funções da vida nos ficam coladas à pele, como escreve o autor logo na segunda página do primeiro conto deste livro – “Era ele o magistrado-mor. Ou melhor, fora-o durante o tempo de uma vida; e quando tal acontece, é sabido que a função fica colada à pele como a crosta de uma insarável ferida.” – também um país ou uma zona geográfica nos fica colada à pele, quando aí vivemos mais de quarenta anos, como é o caso de Ricardo Ben-Oliel em Israel, nesse singular país, nessa singular região do planeta Terra. Quem tem a experiência de viver anos fora da Europa, em continentes e em países onde a violência faz parte da paisagem, não pode deixar de se sentir em casa ao ler estes contos. Aqueles que vivem o seu quotidiano sem tiros, sem sangue na rua, ou a sua possibilidade a cada instante, podem chegar a estes contos com alguma desconfiança. Não pelas descrições de violência, que as não tem, mas, por um lado, pelo ambiente contínuo de preocupação que se faz sentir nestes relatos e, por outro, pela omnipresença de um passado recente de dor, de fim do mundo que une as pessoas retratadas. Estas contínuas preocupação e memória colectiva da vivência ou iminência do fim do mundo percorrem todos os contos deste livro. Mas veja-se este exemplo no último conto do livro, já nas suas últimas páginas, e a que voltaremos mais tarde: “Uma mina, e o jipe que saltou. E com ele Yair, pai. Como é possível, ainda há dias, e na semana passada, e no último Verão, e quando há uns anos fomos os três a Varsóvia, a Auschwitz, depois a marcha a Birkenau…” Posso afirmar mais: a iminência do fim do mundo percorre todos os contos deste escritor, que até agora tem apenas dois livros publicados, contando já com este que aqui nos traz. Assim como também a precisão e a beleza da linguagem, aqui acerca de um vilarejo no Alentejo: “O vilar era um desses à maneira de pueblo blanco, onde as calçadas angustas serpeiam, libidinosas, por entre o casario. Baixo e acotovelado. Quase até ao castelo. Este, recortado como um brinquedo, pleno de infantil altivez, vinha do tempo em que os reis eram todos Sanchos e Afonsos. Mas, quando olhado de perto, já o mesmo parecia acanhar-se do seu pano de muralhas remendado, das ameias por terra esquecidas.” Aqui, e apesar de em um vilarejo alentejano, o assunto é algo tão universal e intemporal quanto é o humano: “Estirado na sua enxerga, as mãos sob a nuca, deleitava-se o velho magistrado com a quietação em redor, enquanto para si repetia, com sentido júbilo, já nada ter a ver com o vulgar mundo em que se sua e labuta. Finalmente, dava corpo ao grande sonho da sua vida. Que era pará-la, sustê-la, a ela e à morte também. // Conseguira quanto almejara. O gozo da imobilidade. A paragem no tempo.” As fronteiras que limitam a escrita deste autor, e que podemos ler logo de início no primeiro conto, são estas: um olhar de além-Ocidente e inquietações bíblicas. O território que é limitado por estas fronteiras mostra-nos uma linguagem precisa e bela como raramente se encontra em nossa língua. Leia-se, por exemplo, e logo nas primeiras páginas do livro, para além do já aqui transcrito: “Em baixo, para sul, uma lasca de rio verde-lodo, por onde, assim se dizia, coleavam, incessantes, as cobras-d’água.” ou “Num repente, assustou-se. Eram estilhaços a embater na pequena ventã. Uma chusma deles. Incessantemente. Uns tantos caíam inertes à altura do parapeito; outros aí se quedavam revirados, de patas no ar, num último esforço. Saltões. Os gafanhotos. De novo a morte, disse para consigo. Passou a espiá-los. Com o escoar dos dias, a ressequirem mais e mais.” Ou ainda: “Ficou-se a ouvir o zunido do vento suão. Era um silvo que crescia e recuava, que ganhava fôlego, e que o perdia, que se esgueirava pelas ruelas do povoado, para logo trepar montes e espraiar-se pela planície longa. Mas que voltava, como o respiro de um fogoso gigante a vogar no espaço. Vento fugido. Vento cigano.” e ainda mais esta “Comprara-o no mercado quinzenal. De caule franzino, folhas parcas, raiz bebé. Um pé de limoeiro. Vieram plantá-lo ao fundo do quintal. Mas mal começaram a rasgar a terra, logo deram com objetos duros e estranhos. Envoltos em terra mais que ressequida. Resquícios soltos, uma mandíbula, ainda uma outra, uma tíbia, logo uns fanecos de vasilhame. Ficou uma tarecada dispersa pelos cantos, aos montículos.” Muitos são também os momentos em que a metafísica se levanta, como já vimos anteriormente, mas veja-se mais um exemplo em que a linguagem para além da beleza e da precisão, levanta os pés do chão. Veja-se, e ainda nas primeiras três páginas: “Havia muito que a morte o intrigava. Que o atormentava até. Sobretudo pelo mutismo que se lhe segue. Qual o enigma por detrás daquela insondável, provocante quietude, tão próxima e tão remota, qual a razão para logo tudo se silenciar? Era quanto o alto magistrado inquiria em momentos de maior cogitação, que os tinha. O “após” sempre fora para ele o grande mistério, sobretudo depois que um dia…” Tudo é uma verdadeira relíquia. E não só pela linguagem, mas também pelo mundo que se abre diante de nós daquilo que fomos, ainda não há tanto tempo atrás, pois desde o tempo em que o conto nos mete até agora, passou-se não mais do que uma mão de décadas. E veja-se esta maravilha, onde a metafísica se torna bela só para se rir de nós, humanos: “Seguiu-se a audiência, quem lá estava era a Laldinha, em tempos rica de curvas, quem diria ser a mesma quando ao peito já só trazia penduradas como que duas alforrecas dadas à costa, veja-se no que a natureza dá volvidas as idades (…)”. No segundo conto, Sorrindo ao Cristo-Rei ou Simplesmente Perversa, a precisão e beleza da linguagem não nos abandona. Quase de início deparamo-nos com este curto parágrafo: “Passeamos junto ao rio, que ondula molemente. Súbito, é um sol de Agosto que se liberta de umas nuvens vagabundas e que nos ataca, esbraseado, impiedoso.” E estamos no meio de um passeio com um homem e uma mulher, o narrador Leo Blaustein, e Dafna. Um passeio de domingo ao Cristo-Rei. E o logo de seguida “Temos duas esplanadas à escolha. Uma lá mais ao fundo, de onde vem um intolerável banzé electrónico (…)”, mostra-nos claramente já não tratar-se de um outro tempo, como no conto anterior, mas deste nosso tempo de barulho ensurdecedor. Este conto corta-nos a direito. O modo como o narrador nos mostra o humano nas suas actividades de lazer, hoje, e ao mesmo tempo ligando-as sempre a uma ontologia, e como tal de sempre, é magistral. Leia-se as seguintes passagens: “Decorridos uns momentos, há um casal de jovens que se aproxima, a quebrar o letargo envolvente. Sentam-se diante de nós. Ela, elegante nos seus jeans, coçados à moda, e de uma deslumbrante cabeleira fulva; ele, atrapalhado na vestimenta, cabelos na vertical, olhos protuberantes e mortiços à Homer Jay Simpson.” Saltando um parágrafo, o narrador massacra-nos com aquilo que tantas vezes acontece na vida e só quem está a viver esse acontecimento não vê: “Então é o jovem quem, depois de fotografar o cenário, desata a disparar a máquina sobre a companheira – um clique, e mais outro, outro ainda, depois um último, já de muito perto – enquanto ela volteia instantemente os já desgrenhados cabelos áureos. Depois, é-lhe encontrada a mão. Porém, não obstante os carinhos, era notório o cunho de efemeridade que emanava daquela ralação, esteticamente tão díspar.” O autor sempre a lembrar-nos que a vida só a sabe quem a não vive. Só aquele que a observa pode julgar e saber convenientemente, ou mais aproximado da verdade humana, aquilo que acontece. Nunca aquele que vive. Nunca se sabe o que se vive. Há ao longo de todo este conto uma espécie de “Mil e Uma Noites”, e aqui então a narrativa retrocede no tempo, não como entretenimento do sultão, mas como artifício de pôr o outro a escutar a sua história. O artificio é simples, o mesmo usado na sedução, fazer parecer que vai beijar, contar, mas adiar continuamente o beijo e derramar a história um pouco mais para diante, ao ponto de Dafna chegar a perguntar-lhe directamente: “Mas diz-me uma coisa, Leo: será que, de facto, tencionas responder à minha pergunta, ou apenas entreter-me com mais uma das tuas histórias?” Este beijo que Dafna tanto espera, a resposta à sua pergunta logo no início do conto – “Importas-te de me esclarecer o porquê desse teu sorriso?” – será tão mais adiada quanto a maestria do contador. Assim, e tal como Sherazade vai adiando a sua morte, ao contar histórias ao sultão, também Leo vai adiando a resposta na certeza de com isso ter toda a atenção de Dafna, que é também um modo de adiamento da morte. Porque todos precisamos de contar a nossa história àqueles de quem gostamos. Porque narrar não é apenas uma necessidade; narrar é fazer viver o vivido, fazer-nos viver de novo. Quem não narra não ressuscita.