h | Artes, Letras e IdeiasAs 72 virgens Valério Romão - 31 Mai 20171 Jun 2017 [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s religiões que conheçam postulam, todas elas, um paraíso. Este cumpre a função de resolver da morte e da sombra que esta projecta sobre todo e qualquer homem, sem excepção. Epicuro tenta solucionar lógica e friamente o medo associado à inevitabilidade da morte dizendo “enquanto somos, a morte não é; quando a morte é, não somos”. Desde logo, nada a recear, aparentemente. O problema é que o ponto de vista humano não é nem como o dos animais – completo mas cego para si próprio – nem como o dos deuses – completo e absolutamente transparente para si próprio. A forma como estamos desenhados permite-nos pensar em coisas que não existem de todo – ou ainda – ou às quais não temos um acesso adequado como, por exemplo, o infinito, deus ou o futuro. E a forma como vemos o futuro, ela própria, é paradoxal: por um lado, sabemos que vamos morrer e que isso pode acontecer a qualquer momento e, por outra parte, vivemos como se a morte fosse uma coisa que acontecer “aos mais velhos”, “aos doentes”, “àqueles que moram em países assolados pela guerra ou pela fome”, em suma, aos outros. Não conseguimos imaginar a morte própria. O mais perto que conseguimos chegar disso é imaginando a procissão de carpideiras num funeral em que somos, simultaneamente, figura principal e espectador invisível. O paraíso cristão abjura a figura do corpo. É a alma que é sujeita a condenação ou salvação. De um ponto de vista lógico, é uma posição extremamente bem urdida: não somente elimina o problema do corpo e do seu perecimento, como a logística necessária para manter um paraíso em risco permanente sobrelotação. As almas, como se sabe, não ocupam espaço, não adoecem e são (postula-se) imortais. Não faz qualquer sentido trazer para o paraíso o plano vectorial onde acontece o desejo e a dor, em suma, o plano que possibilita a instalação de todas as formas imagináveis de desordem. O lado negativo da teologia cristã consiste na forma como o corpo é negativamente encarado em vida. Mas como o paraíso tem uma duração infinitamente superior a este “passeio no parque” a que chamamos vida, a troca parece ser, em todo o caso para o crente, vantajosa. No caso do paraíso muçulmano, porém, a história é de todo diferente. No paraíso muçulmano, não somente o corpo existe, como existe de um modo intensamente sensual. Aos homens estão prometidas setenta e duas virgens com seios em forma de pêra, puríssimas, eternamente jovens e livres de alguns inconvenientes reservados aos corpos na terra: não menstruam, não urinam e não defecam. Em jeito de cereja no topo do bolo, diz-se também, e perdoe-se desde já a tradução livre de “appetizing vaginas”, que estas possuem como característica constitutiva, embora sendo virgens, “vaginas gulosas”. A primeira pergunta que se pode fazer acerca deste paraíso – deixando para Deus a resolução do problema de espaço – é sobre a natureza problemática da virgindade num local em que o principal atributo é a eternidade. Quando tempo duram setenta e duas virgens no paraíso (pressupondo a virgindade um atributo fundamental, visto ser tão vincada na promoção do paraíso)? Tendo em conta os textos fundamentais da teologia muçulmana, nos quais se postula que os homens têm erecções eternas e que podem satisfazer mais de cem mulheres de seguida, muito pouco. Setenta e duas virgens não enchem nem a cova de um dente. A eternidade é muito tempo. A forma como a sexualidade é vivida nos países nos quais a ortodoxia muçulmana está mais profundamente instalada condiciona decerto esta visão do paraíso. Na Arabia Saudita, exemplo máximo de uma concepção radical do islão, duas pessoas do sexo oposto não podem ser vistas juntas em público, sob pena de serem castigadas pela polícia dos costumes, uma dependência do Ministério da Promoção da Virtude e da Abolição do Vício. A sexualidade, que não se subsume nem por decreto real, acaba por obedecer à regra “where there’s a will, there’s a way” e as pessoas, impedidas de dar azo aos seus impulsos na forma como os sentem e como optariam exprimi-los, acaso o pudessem, adoptam soluções de recurso. Os comportamentos homossexuais, como no cárcere ou numa viagem de barco de longo curso, acabam por impor-se. E, mesmo nos casos em que a disposição fundamental é a homossexualidade, não sendo esta um recurso para algo que não tem possibilidade de cumprir-se, o comportamento não define a identidade. Por exemplo, não se considera homossexual o sujeito activo da relação, só aquele “que fica por baixo”. Sendo certo não ser possível ficarem todos “por cima”, a formulação é semelhante a que um professor meu de filosofia dava pelo nome de paradoxo mediterrânico, que se exprimia pela contradição em termos entre “todas as mulheres terem de ser castas e todos os homens, fodilhões”. Viver desta forma absolutamente condicionada aquilo que, mesmo numa sociedade laica e tolerante, pode ser um problema fundamental da existência, a saber, a sexualidade, não pode não ter consequências. E se é certo esta leitura repousa na consideração de um sistema de variável única, não é menos certo que esta é uma variável que tem sido incompreensivelmente posta de parte nas leituras que tenho tido oportunidade de encontrar um pouco por toda a parte.