Perspectivas VozesDeficit de liderança global Jorge Rodrigues Simão - 29 Mai 201728 Jun 2017 “Traditional leadership in all its forms, even the most liberal and humanistic, has always had to delve deep into what is instinctual and emotive in the collective psyche to find the elements which will lend it force. Democracy, in its fundamental dimension, is a means of limiting the egotism and waywardness of those who exercise power by replacing them with others when their pretensions become intolerable.” “The Mask of Command” – John Keegan [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] história é movida pela interacção entre a actividade humana e a circunstância, pelo que se dá um grande valor a esta união, particularmente nas matérias de guerra, paz, e de construção das nações. O historiador John Keegan fez a impressionante asserção de que a história de grande parte do século XX, foi um conto da biografia de seis homens, Lenin, Stalin, Hitler, Churchill, Roosevelt e Mao. Onde quer que nos encontremos sobre a questão do papel do indivíduo na história, o seu impacto deve ser incorporado nesta equação, particularmente, quando se trata de explicar os sinais de mudança na história de uma nação. É que actualmente somos empanturrados com líderes e lideranças como a solução, se não a panaceia, para quase tudo o que nos aflige. Admiramos o atrevido líder transformador, que procura mudanças fundamentais e valoriza menos o cauteloso que negoceia, triangula e se prepara para resultados menos dramáticos, e tendemos a esquecer também, que os grandes líderes quase sempre surgem em tempos de crise nacional, trauma e carência, um risco que corremos, se sentimos a necessidade pelo seu retorno. Ainda assim, como o Santo Graal, procuramos alguma fórmula mágica ou chave para tentar entender a explicação sobre a grande liderança, e devoramos vorazmente as lições dos percursos de quem consideramos líderes eficazes nos negócios, meios de comunicação, ou na política. Se digitarmos livros de liderança no motor de busca da “Amazon” obtemos oitenta e seis mil e quatrocentos e cinquenta e um resultados, e esse número cresce diariamente. Quer estudar sobre liderança, ou melhor ainda tornar-se um líder? Há certamente um programa até para os mais exigentes. A “International Leadership Association” faz uma lista de mais de mil e quinhentos programas académicos nessa área. Este foco nos líderes é compreensível, particularmente durante épocas de grande incerteza e ansiedade. É natural e até mesmo lógico procurar líderes, quando o nosso destino e futuro, parecem movidos por forças impessoais e imprevistas, além do nosso controlo. Os psicólogos e mitólogos dizem-nos que a necessidade de procurar o grande líder para nos guiar ou até mesmo nos resgatar é um impulso antigo, mesmo primordial. Esta forte necessidade de forte liderança existe também na América, embora pareça estar em conflito com uma crença americana, que coloca um reconhecimento na auto-suficiência e independência. É suspeita pelo poder e autoridade e, expressa ambivalência sobre a ideia de líderes poderosos. A necessidade exagerada e extraviada de heróis e de liderança heróica, de facto, parece particularmente incongruente e até mesmo inapropriada em uma cultura política que celebra uma liderança eficaz, mesmo quando a constrange, e especialmente em um momento em que parece haver tão poucos líderes políticos predestinados a serem encontrados. Para complicar ainda mais as coisas, não entendemos como os líderes realmente lideram. Na verdade, temos uma visão muito idealizada, até mesmo cartoonista, desta matéria. Temos a noção de que os melhores líderes são aqueles que são eleitos, prometendo altos princípios, visões elevadas, ou grandes programas e, em seguida, impô-los através do seu poder pessoal e persuasão, e quando os líderes não podem desempenhar o papel do herói, atribuímos o seu fracasso à incapacidade de comunicar e articular uma narrativa tão poderosa e convincente, que os seus seguidores se reúnem e os que duvidam e se opõem, não têm escolha, senão cumprir ou realizar comícios para recobrar forças, e na linha de Shakespeare, que Jacqueline Kennedy amava, Glendower vangloriava-se de Hotspur, em Henrique IV (acto 3), de que poderia “chamar espíritos do repouso profundo”. “Assim pode qualquer homem,” Hotspur respondeu, reflectindo a situação do líder na nossa era, acrescentando: “Mas virão quando os chamar?” A concepção de liderança “chamada e vinda” é mais apropriada para Hollywood e para uma visão idealizada da nossa história, do que para a vida real no mundo político. O estratega democrata Paul Begala, brincou com referência às acusações de que Barack Obama não conseguiu elaborar uma narrativa convincente, afirmando que não tinha problemas de comunicação, mas um iceberg de problemas. As palavras de um presidente são importantes, mas deve haver contexto para dar-lhes um verdadeiro significado e poder. Tal contexto é muitas vezes uma questão de circunstâncias incontroláveis. Os líderes não podem criar todo o contexto, se é crise, oportunidade, ou ambas. Karl Marx ao escrever no século XIX, observou que os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias auto-seleccionadas, mas sob circunstâncias existentes, dadas e transmitidas do passado. O líder aspiracional que adora concentrar-se no amanhã, o ontem é ironicamente pelo menos muito importante. Na maioria das vezes, os líderes eficazes intuem o que os tempos tornam possível e, em seguida, se são verdadeiramente habilidosos, exploram e ampliam essa oportunidade para ajudar a moldar a política que os sustenta. Na verdade, hoje em dia aqueles que favorecem e se alinham com a multidão de Carlyle e a visão do “Grande Homem” da história têm um sério problema. Estamos no século XXI, setenta anos após os seis transformadores de Keegan, que tentaram conquistar ou salvar o mundo. Olhando ao redor, onde se encontram os grandes heróis, os líderes ousados e inovadores, aqueles que simplesmente reagem aos acontecimentos, mas também os moldam? Onde estão os gigantes de antigamente, os transformadores que mudaram o mundo e deixaram grandes legados? Muitos foram líderes muito maus que apareceram e desapareceram como Pol Pot, Idi Amin, Saddam Hussein, Muammar Qaddafi, Slobodan Miloševic, e alguns muito bons, como Charles de Gaulle, Konrad Adenauer, Anwar Sadat, Mikhail Gorbachev, Papa João Paulo II, e Nelson Mandela. Os líderes, com certeza, podem emergir dos lugares mais improváveis e nos momentos menos esperados e mais fortuitos. Pensemos apenas em Abraham Lincoln, Mahatma Gandhi e Martin Luther King Jr., e quem sabe que tipo de círculo longo da história dos líderes pode produzir o futuro? Apostar no futuro é, na melhor das hipóteses, um negócio incerto. Hoje as realidades não se apresentam tão brilhantes. Enfrentamos um deficit de liderança de proporções globais. Encontramo-nos no que se poderia chamar de era de liderança pós-heróica. A ONU tem cento e noventa e três países membros, dos quais oitenta e oito são democracias livres e funcionais. Os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, os chamados grandes poderes, Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, China e Rússia, não são liderados por grandes líderes transformadores, e nem outros países em ascensão como o Brasil, a Índia e a África do Sul possuem líderes com sinais fortes. O Brasil vive os piores momentos de governança da sua história. Vemos líderes que são hábeis em manter o poder e os seus cargos por muitos anos, como Vladimir Putin e Recep Tayyip Erdogan. Angela Merkel é uma líder poderosa e uma política habilidosa; o primeiro-ministro indiano Narendra Modi pode muito bem revelar-se um líder a ser escutado. Mas onde estão aqueles líderes que poderíamos descrever honestamente como potencialmente grandes, heróicos ou inspiradores? E quantos não são apenas grandes, mas bons, com humildade e elevados padrões morais e éticos, também? Quantos serão os autores de alguma realização incomparável, inigualável e enobrecedora no seu país ou no cenário mundial, uma conquista que provavelmente será vista ou lembrada como grande ou transformadora? Se fosse pressionado a identificar um líder potencialmente grande, seria impossível oferecer um chefe de Estado tradicional, mas sim uma figura religiosa – o Papa Francisco I, cuja grandeza, bem como a bondade, pode muito bem ser definida pela ironia da sua anti-grandeza, comunhão e humildade. Os grandes eventos ou crises, actualmente, não parecem conduzir a uma liderança afável, mas justamente considerados recipientes para líderes emergentes, pois nem a rebelião nem a revolução parecem capazes de produzir líderes históricos, mais condicentes com essas circunstâncias históricas. A mais ampla transformação desde a queda da antiga União Soviética foi a chamada Primavera Árabe, que ainda não conseguiu conceber um único líder político com o poder e capacidade de transição do autoritarismo para uma reforma democrática. Os que permanecem em um mundo árabe inseguro, em grande parte os reis, emires e xeques parecem muito ocupados a olhar o espelho retrovisor, para considerarem qualquer realidade como uma reforma voltada para o futuro, audaz ou transformadora, esquecendo as mudanças históricas. Os líderes têm o que é necessário para serem bons líderes transaccionais, ou seja, para gerir os problemas mais mundanos e os desafios que têm em mãos e ainda para proporcionar uma boa governança? Será possível explicar a ausência de grandes líderes no cenário mundial? Não existe nenhuma explicação simples ou única. A parcela da resposta seguramente repousa sobre o simples facto de que a grandeza, se for definida geralmente como uma realização incomparável do que é uma nação, ou mesmo que altera o mundo, é por definição rara, não apenas na política, mas em qualquer aspecto do empreendimento humano. É de entender que uma apreciação desta natureza também requer tempo, que é o último árbitro que dá valor à vida juntamente com a perspectiva de poder julgar o valor ou a qualidade de uma realização. Ao contrário da realização individual na arte, música, literatura ou mesmo nos desportos, a política tem muitas partes movediças e uma variedade muito ampla de factores, que estão além da capacidade de controlo de um político. Há uma terrível complexidade e contingência para a vida política, particularmente em democracias onde a política eleitoral, opinião pública, grupos de interesse e as burocracias conspiram para frustrar até mesmo os melhores planos estabelecidos. Se tal é verdade nos países, é duplamente real para os que procuram o sucesso da política externa no mundo cruel e imprevisível além fronteiras. Os líderes contemporâneos que aspiram a conquistas inigualáveis e sem precedentes, enfrentam o grave problema da incerteza que preside ao nosso tempo. As nações, tal como as pessoas, passam por provações necessárias, ameaças existenciais e crises no início das suas histórias. As nações e as políticas que sobrevivem provavelmente nunca passarão por essa forma de provação novamente, em grande parte, porque tinham os líderes certos no momento correcto, para guiá-las através desses desafios. À medida que as nações amadurecem, a necessidade e oportunidade da acção heróica para prevenir ou lidar com esses desafios existenciais diminui, juntamente com figuras e narrativas que definem o mito e a realidade necessárias a uma grande conquista. Talvez o mais significativo para explicar o deficit de liderança moderno, é o facto de que o mundo se tornou um lugar muito mais complexo para os que querem adquirir, manter e usar o poder de forma eficaz, mas muito menos para produzir mudanças históricas. Alguns argumentam que chegámos ao fim da liderança, outros ao fim do poder, ou pelo menos à sua decadência e dissolução. O escritor e colunista venezuelano Moisés Naím editor chefe da revista “Foreign Policy” afirma que o poder defronta-se com mudanças rápidas que tornaram as pessoas, bens e ideias mais cinéticas, móveis e conectadas, ideias que têm desencadeado expectativas e aspirações muito mais difíceis de gerir e controlar. Tal é certamente o caso dos autocratas que, como uma verdadeira classe de líderes, entraram em tempos difíceis, pois em 1977, os ditadores controlavam oitenta e nove países no mundo, tenho diminuído para vinte e três em 2011 e restando doze em 2017. O Egipto e a Tunísia que tinham sido governados por dois líderes autoritários durante décadas, foram retirados do poder em poucos meses. Mesmo nas democracias, onde reside a metade da população mundial, a era da informação globalizada e orientada para a tecnologia tornou a governação muito mais desafiadora. A mídia 24/7 intrusiva que reconhece e não aceita fronteiras, confunde a celebridade com uma realização séria e dilui a distância, desapego, aura e a mística necessárias para uma grande liderança. A proximidade, como Ben Franklin opinou, produz desprezo e ingénuos. E para os políticos, demasiada exposição e familiaridade diminui a disposição do público de pensar no líder como ser especial ou grandioso. A cultura mediática actual abre uma verdadeira janela para observar e identificar as imperfeições e falhas dos líderes. Ao mesmo tempo, o nivelamento e a globalização do tradicional campo de disputa, têm conferido ao menor poder para competir e influenciar o maior. Até certo ponto, sempre foi assim na história. O poder de um único indivíduo para actuar sempre foi terrível. O assassinato do Arquiduque Francisco Fernando por um anarquista sérvio colocou em movimento uma cadeia de eventos que levaram à guerra mundial. O assassinato do primeiro-ministro israelita Itzhak Rabin ajudou a matar o processo de paz de Oslo, e a mergulhar a relação israelo-palestiniana em uma crise de confiança, da qual ainda não se recuperou. Ainda assim, os actores menores, livres do que Naim descreve como “tamanho, escopo, história ou tradição entrincheirada”, desafiam cada vez mais os grandes de formas que poucos poderiam ter imaginado ser possível. Em 11 de Setembro, os ataques de dezanove terroristas da Al-Qaeda, prepararam o cenário para as duas guerras mais longas da história americana e uma reorientação fundamental da política de segurança nacional dos Estados Unidos. Em 2013, as revelações de um único contratado do governo dos Estados Unidos de um vasto trabalho de recolha de informações da “Agência de Segurança Nacional (NSA na sigla inglesa) ” no país e no exterior, desencadeou o maior debate em meio século, em como encontrar o equilíbrio certo entre segurança, privacidade e direitos individuais em uma sociedade democrática. Os modernos Gullivers, aspirantes e ambiciosos líderes são amarrados por um exército de constrangimentos e desafios que tornam eficaz governar de forma dura e frustrante.