Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasAs profecias de Horacio e de Duchamp António Cabrita - 18 Mai 2017 13/05/2017 [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]ntem estive atento às manobras de Trump, que, enquanto o ar lhe falta, procura o pipo. A direcção dos meus binóculos tem uma razão de ser: li uma profecia segundo o qual o desdenhoso americano lançava os cães contra a Coreia do Norte no dia 13 de Maio. Transcrevo: «O místico Horacio Villegas, que previu a vitória de Trump nas presidenciais, declarou que a terceira guerra mundial vai ser iniciada este ano. Uma guerra, onde serão envolvidos os EUA, a Rússia, a Coreia do Norte e a China, e que terá início em 13 de Maio de 2017 por iniciativa de Trump. Ele precisou que a guerra não iria durar muito e acabaria já em 13 Outubro de 2017, mas causará muitas destruições e mortes. A data de 13 de Maio não foi escolhida acidentalmente: é o centenário das Aparições de Fátima em Portugal. Por outro lado, o dia 13 de Outubro de 2017 marca a sexta e última aparição mariana de Fátima que, segundo a lenda, tinha declarado que “a guerra vai acabar e os soldados vão regressar para suas casas”. Há 100 anos, estas palavras foram interpretadas como uma profecia sobre o fim da Primeira Guerra Mundial. Hoje em dia, Horacio Villegas aplicou estas palavras para apoiar sua teoria. » Ora, eu acredito piamente em todos os Horácios, menos no poeta romano, dado que os poetas, como se sabe, mentem. Este é místico e nas acareações com o divino algo lhe será transmitido – é assim que eu penso. A profecia não se cumpriu. Porém em Portugal, no mesmo dia, completou-se um ternário: o Papa canonizou os pastores, o Benfica somou o tetra (e o 4 introduz aqui a quaternidade) e um cantor português ganhou a Eurovisão, com o singular nome de Salvador. Se eu acreditasse no pensamento mágico diria que isto anda tudo ligado e a configuração desenhar-se-ia assim: numa espécie de efeito borboleta a ida do Papa a Fátima despertou um novo ciclo de fé que levou o Criador a lançar um relance misericordioso sobre o tão nefasto globo tendo, num piscar de olhos, desviado os dedos sápidos de Trump do alcance de alguns botões mais nocivos que a peste, e dado oportunidade a que uma nova ressonância quaternária reintroduza no mundo a harmonia e a cura das almas, como o atesta o indubitável transe que ontem se deslocou de Fátima para o Marquês de Pombal. E a prova de que o Espírito Santo esteve entre nós é certificada pelo nome do cantor, muito mais do que uma coincidência, o qual nos devolveu a espontaneidade, a crença no impossível e a alegria primordial. Claro que tudo isto já fora anunciado pelos pastorinhos… e por Agostinho da Silva. E como nesta explicação saturada de sentido devolvi ao mundo alguma dignidade profética (dei-te um bigode, ó Horacio!) vou já abrir uma conta bancária para colher alguns contributos para uma (merecida) vida de folia. Logo, logo, informo-vos sobre o iban da conta. 15/05/2017 É curioso como nunca vi lavrada qualquer reflexão sobre a estranheza do mictório do Duchamp se chamar Fonte. As fontes emanam de dentro enquanto para o urinol confluem os fluxos, de fora. Os ready-made são um gesto cujo sentido último mostra de forma paródica que não existe uma essência da arte embora, paradoxalmente, Duchamp tenha designado o seu como Fonte. Mesmo que ironicamente o dadaísta não saiu da orbe do sagrado. Talvez o Bataille tivesse sido o homem ideal para nos falar desta ambivalência, pois afinal por detrás da negação do emérito xadrezista vislumbra-se uma aporia. Deus (que é ateu como eu) deu-lhe xeque-pastor. Em 1912 Duchamp, em companhia de Brancusi e de Fernand Léger, visitou o Salão da Locomoção Aérea e dissera aos amigos, «Acabou-se a pintura. Quem pode fazer melhor do que esta hélice?». E foi consequente com esta rendição quando, poucos anos depois, enviou a Fonte ao Salão dos Independentes, em Nova Iorque, mercê de cujo gesto a arte se tornou aquilo que livremente o artista decide que seja arte. O autor, a partir daí, converte em obra de arte qualquer objecto, bastando assiná-lo. Com graça e petulância diria depois Warhol: «Eu assino tudo, bilhetes de banco, tickets de metro, inclusive um recém-nascido em Nova Iorque, (nas nádegas suponho). Em tudo acrescento ‘Andy Warhol’ para que se converta numa obra de arte». Tem graça a imodéstia, mas não passa disso. O drama é que se acreditou. E da frivolidade engenhosa associada à frivolidade com que os media procuram novidades nasceram os Jeff Koons, os Paul McCarthy (o do dildo gigante na Place Vêndome em Paris, a que deu o soporífero nome de Árvore de Natal – e nada me move contra os dildos, acentue-se), as Joanas Vasconcelos, os Claes Oldenburg, as Sophie Calle deste mundo, que, numa concepção empobrecedora do que seja a arte (afinal, basta-lhes a sua assinatura, só comigo a coisa é mais trabalhosa), limitam a sua criatividade a uma reprodução mecânica dos jogos de deslocar e de multiplicar (cf. “galo de Barcelos” de Joana Vasconcelos que os coitados dos chineses têm de pagar). Contra este embuste, apetece lembrar que Eduardo Chillida e Jorge Oteiza, por exemplo, inventaram maravilhosos objectos que superaram na sua expressividade formal e ilimitada abertura perceptiva as linhas funcionais das hélices dos aviões (profecia, de que até o Duchamp se alheou não voltando à pintura mas produzindo posteriormente algumas peças extraordinárias – o problema está sempre nos epígonos), ou que, mesmo para a pintura, houve excelentes saídas e tão diversas como as de Matta, Tapiès e Soulages. Mas seja no domínio da crença como no da arte, a farsa emerge porque há sempre um profeta peremptório que nos obnubila a capacidade de pensar e de acreditarmos no valor da nossa experiência. Continuamos no geral a preferir a imitação à invenção, estigma de que temos de nos salvar. Salvadores à parte.