h | Artes, Letras e IdeiasA grande invenção Paulo José Miranda - 9 Mai 2017 [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]iego Moraes, nascido em 1982 em Manaus (onde ainda vive), publicou 4 livros, dois em Portugal e dois no Brasil: A fotografia do meu antigo amor dançando tango (2012), A solidão é um deus bêbado dando ré num trator (2013), ambos pela editora Barteblee; Um bar fecha dentro da gente (2015) e Dentro do meu peito você pode cultivar a solidão o ano inteiro (2017) ambos pela Douda Correria. E é este último que será pretexto para falarmos do autor. O livro divide-se em duas partes: contos e poemas. Mas vamos tratar como se tudo fosse poesia. Porque talvez tudo seja poesia. Aliás, é o próprio autor que, no texto que faz parte dos contos, ao descrever uma curta história, termina deste modo o seu conto: “Ela apertou a minha mão e fez um pedido: ‘já que você não quer ficar comigo, promete uma coisa? Escreve um poema ou um conto bem bonito para mim?’ ela entrou no táxi. Deu um tchauzinho triste e respondi para meus demónios mais líricos: ‘já virou poesia’.” Aquilo que virou poesia foi o conto. O filósofo colombiano, Danilo Cruz Vélez, escreve em El Mistério del Languaje (Universidad de Los Andes, 2015), que Paul Valery disse que “a poesia é o paraíso da linguagem”, provavelmente porque ela tem à sua disposição todas as possibilidades, à imagem do que acontecia com Adão antes da queda. Pois, digo eu, antes da queda tudo era possível, antes de nos cair em cima o que temos de ser, aquilo que temos de fazer. É quando aquela célebre pergunta da infância “o que queremos ser quando formos grandes?” se torna uma resposta sem volta, que deixamos o paraíso. E a poesia é antes disso. A poesia é o que acontece antes de sermos alguma coisa, antes de fecharmos as possibilidades numa definição que carregamos ao longo da vida e que iremos responder sempre que nos perguntarem “o que é que faz na vida?”. Mesmo quando já se é alguma coisa, e não possibilidade pura, liberdade antes da liberdade – pois esta define-se precisamente por ser sempre o ter de escolher –, a poesia quando aparece é uma suspensão naquilo que se é. Por conseguinte, a palavra que talvez melhor dê a mão à palavra poesia seja “invenção”. A poesia inventa tudo. E, como Fernando Pessoa viu muito bem, inventa até o sentimento que não tem. A poesia só não inventa a linguagem, o resto inventa tudo. A poesia é a expressão de linguagem que mais inventa dentro da própria linguagem. Não se trata somente da invenção de conteúdos, mas também da invenção da gramática. Aqui e ali, inventa também novas palavras. A poesia chega mesmo a inventar-se a si própria, a inventar aquilo que é. Chega a ser prosa, a ser diálogo, teatro, aforismo; chega mesmo a ser o que não é, porque também há poesia que, embora pareça ser, não é. O paraíso – não ser nada ainda e poder vir a ser tudo – não comporta definições. A poesia viaja facilmente entre a metafísica e o mercado da ribeira (neste caso, entre a metafísica e os arrabaldes de Manaus), entre a ironia e a edificação religiosa. O paraíso não tem tempo. É invenção pura, ainda que tenha lá um homem e uma mulher e isso esteja condenado a, mais cedo ou mais tarde, não dar certo. Inventar, na poesia, não é escrever o que não existe, o que nunca foi, mas o que nos sufoca de tal modo que, mesmo que não seja a nós que nos acontece, acaba por acontecer cá dentro, num espaço sem tempo, no paraíso que todos temos, que todos somos quando inventamos. E esta noção de invenção é, parece-me, uma das condições fundamentais na escrita de Moraes. Neste poeta, a vida e a escrita confundem-se propositadamente, isto é, o autor deixa o leitor próximo da sua vida, devido a um tom ostensivamente confessional, para ao mesmo tempo inventar melhor aquilo que é, aquilo que foi e aquilo que será. Ele mesmo escreve no conto “Buraco”: “Não gosto de escrever coisas verdadeiras. Sinto-me jornalista. Escritor é escritor que inventa coisas.” Os factos, como sendo da sua vida ou do que ele descreve como sendo da vida dos outros, importam na medida em que são um jogo intencional, como no texto “11 de Setembro”, em que o narrador fala da Dona Lígia, de quando ele era mais jovem e do reencontro de ambos 15 anos depois. Mas muitos outros exemplos poderiam ser aqui citados. O que mais importa nesta escrita, de Diego Moraes, não é a possibilidade de rastrear uma biografia, mas a de deixar-se levar pela invenção. A de podermos ser o que não somos, porque, na realidade, ninguém é o que é. Acima de tudo é isto que o autor nos diz, ao ir-se desfazendo página a página. E esta condição de deslocamento de cada um em relação a si próprio – ou porque anos atrás deixou de fazer o que queria ter feito, ou porque mesmo agora não é aquilo que julga ser, ou porque falha continuamente no que tinha prometido a si mesmo e aos outros fazer – é o que mais aparece a cada esquina da escrita de Moraes. A humanidade, descrita ao longo das páginas, bem poderia definir-se pela última frase do conto “11 de Setembro”: “Um cheiro meio brega de perfume barato e esperança.” Porque em comparação com um vida humana, com o que uma vida humana deveria ser, com o património de sonhos que carrega, tudo é barato. Nada é tão luxuoso, tão caro como uma vida humana. É este ensinamento que percorre a escrita de Moraes. E o maior problema não é a vida acabar-se, a vida de cada um perder-se, mas que a alegria se acabe e continuemos a viver; que a amizade acabe e continuemos a viver, que o amor acabe e continuemos a viver, que as madrugadas belas de tudo parecer ser possível acabem e continuemos a viver, que o querer bem a alguém se acabe. E que melhor modo de enunciar tudo isto, que uma grande invenção, como se, todos nós de cada vez que lemos, ainda cheirássemos a paraíso? Terminemos com um poema de Diego Moraes, 14, que diz melhor tudo isto, como só a beleza pode fazê-lo: Sinto muito ter invadido sua casa Estava bêbado e amanhecido e com aquela camiseta preta da banda Joy Division que odeia tanto Desespero Saudade Sinto muito por ter comido sua melhor amiga e estragado o dia dos namorados no rio de janeiro Sinto muito por ter quebrado os dentes e abandoná-la naquele hotel do centro Aqui dentro está tão frio Não para de ventar e uivar teu nome Sinto muito por não ter comprado os azulejos e a pia do banheiro Por ter gastado tudo com drogas e cancelado o sonho de morarmos juntos nos fundos da casa da minha mãe Às vezes acordo e choro pensando como poderia ter sido bom Sinto muito por ter gozado dentro naquele sábado que dormimos abraçados vendo um filme do van damme e você disse “um filho agora foderia tudo, di” E sua menstruação atrasou como o brilho da lua Juro que queria ter um filho contigo Um filho negro com nome bíblico Que jogasse futebol e fosse artilheiro do Vasco da Gama Sinto muito por não ter dinheiro para levá-la para Florianópolis Cidade que só conhece por cartão-postal Sinto muito por teu pai ter me visto com o nariz sujo de pó no estofado da sala e não ter falado nada quando ele disse que o amor não enche barriga Devia ter dito que o amor escreveu os melhores livros e que ainda existe mundo por causa da brasa que nos esquenta por dentro Sinto muito por não ter comprado “crime e castigo” na saraiva e empurrado sua cabeça por ciúmes Aqui dentro está tão frio As ruas de Manaus parecem de Moscou Agora deixo mensagens no teu Samsung como se fosse Nostradamus prevendo o pior A tua indiferença seca os tumores no fígado do mendigo do outro lado da rua e não tem poema que console a dor de tê-la trocado por cerveja e cocaína Sinto muito não ser o melhor pra você e seus filhos Ele deve ser um homem digno que acorda cedo e te leva para o trabalho falando sobre jurisprudência e direitos do consumidor O direito não pesa na balança O que pesa é teu rancor por eu não ser o que sonhavas Minhas promessas não cumpridas Eu nunca poderia te fazer feliz com a minha literatura suja e meu sonho de vencer o mundo com lirismo Sinto muito por não ter emagrecido e me matriculado no CCAA Nunca quis falar inglês A minha língua é morta como as cartas que a tua empregada jogou fora Aqui dentro está tão frio Meu peito parece a Antártida e tudo que mais queria era que você botasse um par de patins e patinasse em mim sorrindo como se fosse uma criança no natal.