Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasRessonâncias: conversas com o meu gato António Cabrita - 13 Abr 2017 [dropcap style≠’circle’]- N[/dropcap]ão me digas que acreditas nessa treta das estéticas comparadas! – Não é treta, existem leis comuns. Olha, neste verso de Eluard, «há nos bosques árvores loucas por aves», surpreendemos uma boa parte da mecânica do cinema. Não falo só dos processos, e citaria a «montagem das atracções» do Eisenstein, evoco uma das duas pulsões que regem grande parte das narrativas: neste caso o «segredo». – E como é que desse verso partias para um filme? Não te entendo… – O enredo do filme partiria da dificuldade (o motor de uma história é o que a estorva) em desenhar um mapa com as árvores que no bosque são loucas por aves. O antagonista seria o guardião de uns ovos de ouro maciço com inscrições em sânscrito, escondidos no bojo de uma figueira-da-índia quase milenária, os protagonistas um casal de ornitólogos aparentemente inocentes – ele tem um grave problema com o fisco que ainda não confessou à sua amada. O que lhe dá motivações secretas… – És engenhoso, mas estás a gozar comigo!? – Claro que brinco, mas inúmeras narrativas reduzem-se mesmo a dois modelos, o do segredo (aquilo que motiva a investigação), e o da viagem (a experiência que transforma as personagens no itinerário do auto-conhecimento). Blue Velvet é um bom exemplo para o segredo, Taxi Driver ou Apocalipse Now para os da viagem. – Hum, ontem li uma página do Saramago, que me espantou. Foi nos Cadernos de Lanzarote. Tem uma entrada onde ele dá forte e feio no Drácula… do Coppola. Fala inclusive em embuste. Concordas? – Olha, trabalhar no cinema é, e até mais do que contar as fábulas, fazer multiplicar as ressonâncias. Quanto melhor o filme mais elaborada ou subtil é a sua rede de ressonâncias entre os vários níveis de construção (plástica, diegética, sonora) que o compõem e que capturam a emoção dos espectadores. Às vezes os espectadores mais inteligentes não dão conta. Talvez nunca dispam a inteligência, será o caso do Saramago. Ora, esse Drácula tem, mesmo descontando o Keanu Reeves, pelo menos um raccord que vale o filme inteiro, bastariam esses sete segundos para o justificar. – Explica-te… – A expedição do dr. Van Helsing está de partida para a Transilvânia e a aristocracia londrina oferece-lhes uma festa. Convivem no jardim do palacete, na véspera da grande aventura. Dois pavões cruzam o plano e isso origina um olhar subjectivo que vai fechando o plano sobre uma das aves e a sua cauda até se enfocar num dos “olhos” negros. E de imediato vemos, já na Transilvânia, o comboio que os transporta a penetrar num túnel da montanha. A rima plástica do olho da cauda do pavão a penetrar no túnel com uma forma idêntica (o raccord) ganha uma transversalidade isomórfica (o isomorfismo é a similitude de estrutura que se dá entre fenómenos superficialmente muito diferentes): eles vão entrar no lúgubre curso subterrâneo das suas almas, de onde não sairão mais. E temos o jogo das ressonâncias a actuar em pleno. – E essa coisa das ressonâncias, onde a vês mais? – Olha, na pintura oriental. Na poesia. Na poesia uma grande metáfora é como um passe vertical no futebol, atravessa de um só golpe vários níveis de realidade e abre novas perspectivas… – O golo… – Sim, uma metáfora bem concebida equivale a um golo… – Dá-me lá um exemplo… – Repara nestes dois versos do Amadeu Baptista: «Acredito que chegas à ausência desta praia/ para despertar o mar». Como é que se chega à ausência de uma praia, perguntarão os racionalistas. Provavelmente de pára-quedas, como os anjos. Mas esta questão é similar ao enigma que é discutido há décadas por físicos quânticos e monges budistas e que se resume ao seguinte: quando não há ouvido humano por perto, o galho da árvore que se parte faz barulho? Este enigma é o que desperta nos versos de Amadeu: «Acredito que chegas à ausência desta praia/ para despertar o mar.» Como é que dois versos escritos avulsamente, sem preparação prévia, se sintonizam com o que tanto perturba cientistas e monges? Que tipo de memória desponta nessa intersecção, onde mar, audição, sujeito e leitor se tornam um? É um caso de ressonância… – Eh, pá! E servem-te para alguma coisa essas macaquices? – Para nada, não fazem parir as lecas na conta bancária, não te habilitam a quatro quintos das posições do Kama Sutra… Não curam a sífilis. Só me dão um cansaço… – Um cansaço? – Sim, há cansaços benignos, que te fazem baixar as defesas, a censura… e propiciam a meditação… Quando trabalhava nos jornais, bebíamos muito. Hoje sei: era uma forma mecânica de baixar a guarda, de nos colocarmos sem censura nem pressão para que o texto aflorasse e se desenrolasse a si mesmo… – Como a inspiração? – Não, isso é um conceito romântico e perigoso, porque laxista. Mas existe uma espécie de inteligência não circunscrita, isso sim… E que actua por ti, se a deixares. – O célebre daimon do Sócrates? – Aí já te pões num plano de acareação com o divino, um tu cá tu lá… Sejamos humildes … E o teu inconsciente talvez não precise de tutela… – São tretas dessas que vais ensinar no curso de guionismo que vais dar no mês que vem? – Antes fosse, mas eles quase sempre só querem saber como é que se conseguiu dar três seios à mutante no Total Recall… Só se interessam pela cosmética… – E há mais do que isso? – Há um milhar de obras em todos os domínios que me faz crer que sim, há a experiência atestada de milhares de pessoas que me faz crer que sim… – As coisas que tu pintas… – Não pinto nada, são constantes. Quem quiser vê-las… – Diz-me lá, que procura uma mulher no amor, que constantes? – Um Don Juan cego… – Sim? – Alguém que venha pelo menos precedido pela fama de ser uma fera na cama e que como é cego a trate como se fosse única… E esta é a mais benigna ilusão do amor. – Balelas… – Talvez. Mas o meu epitáfio vai ser: “Eu que fui tantos, não fui aquele que mordeu o pescoço da Winona Ryder!” e isto é um lamento sério, diria mesmo que é cancerígeno.