Exposição | Anabela Canas mostra série de desenhos feitos para Macau

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ão dois anos de ilustrações de Anabela Canas que têm a sua exibição marcada para a próxima quarta-feira, na Galeria da Livraria Portuguesa. A acompanhar o evento está o lançamento do álbum que acompanha as imagens com pequenos trechos dos textos que escreveu para a secção do HM,  “De tudo e de nada”

“Iluminação Artificial” é a exposição de Anabela Canas que vai ser inaugurada esta quarta-feira na Galeria da Livraria Portuguesa.

A mostra reúne um conjunto de desenhos que ainda estão a ser seleccionados. “É um conjunto impreciso”, afirma a artista, e sai de uma escolha entre os 78 trabalhos que produziu para a rubrica do HM, “De tudo e de nada”.

“Gostaria de os expor todos porque todos fazem sentido, mas há um limite de visibilidade, de elegância e de clareza na galeria que tem de ser respeitado e vou tentar encontrar um limite razoável, sendo que o critério é sempre a escolha dos trabalhos que, considero, mais conseguidos”, conta.

Porém, não se trata de uma exposição de meros desenhos, são antes, ilustrações “por estarem ligados a um texto e terem um fim específico.” “São feitos de propósito e podem acrescentar mais às palavras ou dar origem a outros sentidos”, diz.

Por outro lado, a exposição só poderia acontecer no território. A explicação é simples: “foram feitos para Macau”.

Imagens legendadas

A mostra acompanha o primeiro livro da artista que é, de acordo com Anabela Canas, “um álbum” e não um catálogo da exposição porque tem fragmentos das crónicas. “São excertos muito curtos mas que tinham de existir pela ligação existente e que podem fugir para diferentes sentidos”.

Anabela Canas queria, nesta estreia, um objecto bonito capaz de guardar as imagens pelas quais, diz, “tem um grande carinho”. “Gosto dos meus desenhos e quando estão feitos olho para eles de um ponto de vista exterior, como se não fosse eu, e quando gosto sinto mesmo muito carinho”, contou. Por isso queria que fossem guardados como merecem. “Não queria que ficassem enterrados”.

A escolha de Macau para a estreia das palavras publicadas em livro  representa “um dilema enorme depois de 15 anos de ausência para arrumar bem as nostalgias”. Macau é agora uma segunda terra que faz com que o que está a acontecer “ainda faça mais sentido”.

Iluminação artificial

Um dia, por um daqueles puros e aleatórios acasos, encontrei-me com um aspecto ligado à antiga arte de iluminar, que me encantou. Monges copistas, na sua tarefa de horas perdidas, horas e horas, dias e anos “num trabalho que não tinha pressa de chegar ao fim”, outros, ou os mesmos, a tecer iluminuras preciosas, a ouro ou prata, a negro e a cores, e que de caminho, talvez os primeiros, anotavam nas margens dos manuscritos os seus desabafos nocturnos e humanos. E por temor ao esquecimento, de seres porque sem nome, em que ficariam caídos pelos caminhos longos e infindáveis da posteridade, o costume melancólico de deixar uma impressão condoída no final. Uma assinatura, um desabafo que enaltece a nobreza do trabalho, do esforço, um anseio de que lhes rezasse pela saúde e pela alma, alguém.

Imaginá-los ao lado, em noites húmidas a entrar nos ossos e a sair de um sono mal entrado, tocadas a aragens arrefecidas pelas pedras. Agrestes. A fazer dançar chamas a iluminar o cansaço. A ensombrar. E sempre, quase a apagar uma vela grossa mas consumida e suada em grossas lágrimas de cera como gotas alongadas da luz produzida com esforço. A rodeá-los a escuridão povoada de sombras enormes e inquietas, nas velhas abadias medievais, quando as tarefas insaráveis lhes curvavam as costas em dor e tolhiam os dedos. O desenho de uma escrita trabalhosa, vingada em lamentos nas margens do texto. Desabafos esquecidos ao apagamento, ou deixados porque sim. A distinguir o fim antes da madrugada, ou o início no fim da noite. Porque as horas se alongam e a tarefa não tem fim. Porque a tinta está demasiado fina. Porque já mereciam um copo de vinho espesso a aquecer a alma e ou pés. Invento.

E assim me podia fantasiar, por vezes, com eles e pela noite fora a tentar laboriosamente vencer o tempo e o sono, e iluminar um texto que só a meio se me começava a desvendar, e só então e não mais, e porque noutros momentos o sentia fechar sobre si, ou a desviar sentidos a meio ou à procura de um reforço a apontar para outros lugares do texto entre linhas. Entre as linhas, como nas margens e como eles, que aí colocavam glosas a desvendar um latim longínquo do falado. Entre as linhas ou nas margens se caminhou para o futuro dicionário de sentidos. A ficar pelos tempos no imaginário da língua, a insinuação sobre as palavras ocultas agora, entre as linhas visíveis e o discurso não dito. A ler nas entrelinhas.

E de uma só vez, me surge uma amálgama de três formas objectivas de ocupar aquelas páginas, em que tudo o que menos se esperava seria a da pequena subjectividade de formiga laboriosa a ganhar um espaço clandestino e que ficou esquecido por entre as páginas. Esquecido de apagar ou, perversamente a imiscuir-se na nobreza suposta do manuscrito, a sua pequena significância tornada existente, real e ancorada no texto.

Texto que não era deles mas sim ditado, copiado, como a ficção literária não é do autor mas de uma existência própria alheia. Imiscuída também ela de desabafos nas linhas, nas margens brancas de silêncio, ou nas entrelinhas. E tal como a iluminura fugia ao texto nas suas figurações icónicas, antropomórficas ou zoomórficas, motivos florais ou entrançados…tudo para trazer a luz da folha de ouro e prata e só assim a verdadeira luz sem outros sentidos, às escuras páginas de letras apertadas e negras, a poupar o espaço e a fugir para o cimo da página para se desviarem do terreno chão oposto. Terreno demasiado terreno. Uma luz real a iluminar o texto numa fuga ao sentido. As dores do humano nas margens do saber… Luz real, se real é o reflexo.

E também eu com a luz ao lado mas de sombras quietas na parede. Vigilantes e meio adormecidas, mesmo as mais ferozes. Roubar tempo ao tempo.

Ilustrar. Tornar nobre e iluminar. De ilustris, em latim, o que é claro iluminado. Ou a raiz indo-europeia lux, de onde vem a luz da lucidez, e a dar lugar ao latim, de novo, em luminis, lucubrare, iluminar, elucubrar. Saborosas palavras de luz. Sempre a luz. E, nas iluminuras medievais, uma luz que se ficava pelo brilho denso da folha de ouro, ou da prata, e das cores fortes dos óxidos. Acompanhar o texto ou produzir significados livres. Sem ambições a aprofundar sentidos. Às vezes só o de humor. De revolta. De monge sem outro lugar para desentorpecer a voz.

Nada mais nobre – para quê ilustrar –– ou subtil e ambíguo – como iluminar – do que as palavras. Não mais, nem menos do que uma imagem. Mas há o acrescentar, o tornar ainda mais divergente aquilo que por palavras e só, já o é. Aquilo que numa imagem o é por inerência também. Há, pois um diálogo de titãs entre umas e outras. Em que a cada uma das subjectividades se acrescenta a das outras, desmultiplicando sentidos ou ilusoriamente clarificando. Iluminando. Mas por vezes de uma luz enganosa. Acrescentar uma leitura/luz diferente, ou simplesmente aumentar as camadas de leitura do texto com a imagem. E vice-versa.

E fez-se uma luz artificial, na fuga irreprimível das linhas insubmissas, ao texto. Estas dos desenhos. Talvez falsas iluminações a fingir a incidência de uma luz polarizada a rir dos sentidos únicos e últimos. Em fuga, sempre. Alumiar noutros sentidos é o desafio do desenho a fugir ao texto, a produzir zonas de sombra, às vezes.

O fabuloso desafio do Jornal Hoje Macau, pela voz do seu director Carlos Morais José. Escrever um texto para um dia da semana – faz dois anos. Setenta e oito dias de hoje, sem carta de marear. E o desafio meu. Iluminar todas as semanas as palavras esquivas e, claro, a negro de fumo. Às vezes, depois, as cores a querem chegar. É o que fica neste livro, e pedaços soltos dessa escrita, aqui, já a ilustrar com as suas sombras e sentidos, o desenho. Agora. O sentido contrário. Sem nunca fugir à luz artificial. Do candeeiro ao lado. Já pelo fim da noite ou na frescura da madrugada. Que lança afinal também ela sombras fluidas. Zonas onde a luz não chega. Falsos brilhos e reflexos enganadores. Talvez. Enormes possibilidades e incomensuráveis impossibilidades que se fundam numa mesma incerteza. De desenhar um sentido. Uma certeza, uma luz, uma escuridão. É isso.

Iluminar. Artificialmente.

Anabela Canas

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