Reedições lamentáveis

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 31 de Janeiro o website “www.miamiherald.com” anunciava que “A interdição de Trump choca o mundo e dá origem a uma batalha legal”. Avançava ainda, “durante a campanha muitos dos eleitores que elegeram Trump apoiaram entusiasticamente o anúncio do cancelamento temporário da entrada em território americano de cidadãos oriundos de países muçulmanos, até implementação de um controlo de segurança das fronteiras mais rigoroso. Estes apoiantes afirmam que Trump provou ser um homem de palavra.”

Na sequência desta promessa Trump assinou uma ordem executiva a 27 de Janeiro, onde se afirmava, “… a suspensão do Programa de Admissão de Refugiados durante 120 dias e a interdição de entrada nos Estados Unidos de cidadãos oriundos de sete países predominantemente muçulmanos criou ondas de choque em todo o mundo, provocou reacções políticas internas e desencadeou manobras legais ao mais alto nível.

A interdição temporária de entrada nos EUA aplica-se a cidadãos do Iraque, Síria, Irão, Sudão, Líbia, Somália e Iémen. A ordem também determina a proibição por tempo indeterminado da entrada de refugiados sírios.

A súbita implementação desta ordem executiva trouxe perturbações tremendas a imensas pessoas em trânsito. Viajantes de todos os tipos, turistas, estudantes, imigrantes e residentes regressados de férias, ficaram retidos nos aeroportos à chegada aos Estados Unidos.”

A 30 de Janeiro, a mais alta representante do sistema jurídico americano, a Procuradora-Geral interina Sally Yates, apontada para o cargo pela Presidência Democrata, deu instruções ao Departamento de Justiça para que não se cumprisse a ordem executiva. Em carta dirigida a este Departamento, afirmava:

“Pelo que sei até agora, não estou convencida de que o apoio a esta ordem executiva seja compatível com as minhas responsabilidades e tenho dúvidas sobre a sua legalidade.”

Trump destituiu Yates e nomeou para o cargo um procurador federal, o veterano Dana J. Boente. Boente é o Procurador Geral do Distrito Leste da Virgínia. No próprio dia em que Yates tinha travado a ordem de Trump, 30 de Janeiro, Boente deu ordens ao Departamento de Justiça para a sua execução. Boente ocupará o cargo de Procurador Geral interinamente até à tomada de posse do Senador do Alabama, Jeff Sessions.

Os media apresentaram versões diferentes de Yates e da sua destituição.

“Ms. Yates, como muitos outros detentores de cargos oficiais, foi apanhada de surpresa pela ordem executiva e passou um fim de semana angustiado a tentar encontrar resposta adequada à situação, afirmaram dois membros do Departamento de Justiça. Ms. Yates considerou demitir-se, mas não quis deixar para o colega que lhe sucedesse a resolução deste dilema.”

“A ordem de Ms. Yates representou uma crítica significativa do representante de um dos mais altos cargos oficiais ao Presidente em funções e é, de certa forma, uma reedição do famoso caso que ficou conhecido como o “Massacre de sábado à noite”. Aconteceu em 1973, quando o Presidente Richard M. Nixon destituiu o Procurador Geral por este se ter recusado a despedir o advogado de acusação do caso Watergate.”

Enquanto Presidente, Trump tem poder absoluto para designar e destituir quem entender. Mas neste caso a destituição parece ser muito problemática.

No dia 31 de Janeiro Trump escreveu no Twitter:

“Os Democratas estão a retardar as designações para o meu Gabinete apenas por razões políticas. Não fazem mais nada senão obstruir. Queriam um Procurador Geral pró-Obama.”

E qual foi a reacção dos media americanos a estas declarações? Criticam sobretudo as novas políticas de imigração criadas por esta ordem executiva, a demissão de Yates é tratada como uma questão secundária. Se Trump tiver fortes razões para convencer a opinião pública de que agiu correctamente, no que diz respeito à emissão da ordem executiva e à demissão de Yates, então o caso fica encerrado. Mas como as novas políticas de imigração são questionáveis, então a ordem executiva e a destituição de Yates também o são. Até ao final de Janeiro Trump não tinha apresentado nenhum argumento válido, capaz de impedir muitos americanos de continuarem a contestar estas medidas.

Do ponto de vista duma relação laboral os patrões devem ter poder absoluto para despedir os empregados. Mas Yates alega que reagiu a uma ordem inconstitucional e ilegal que recebeu do “patrão”, o Presidente dos Estados Unidos. Não dar seguimento a uma ordem ilegal parece ser uma boa razão para não acatar as decisões dos patrões. Trump resolveu o conflito com a demissão de Yates e a sua substituição por Boente e a coisa parece ter funcionado porque não teve de prestar contas à opinião pública. Mas aqui não estamos só a falar de uma relação laboral, a demissão de um Procurador Geral dos Estados Unidos é obviamente uma questão política. A demissão termina o exercício da função, mas não acaba com o problema político. Esta é a grande diferença entre gerir uma empresa e gerir um País.   

Este assunto vai subir para análise do Supremo Tribunal e ficamos à espera da sua decisão quanto à legalidade da ordem executiva. Quando a resposta vier saberemos se Yates tinha ou não tinha razão para ter procedido como procedeu.

“Os peritos afirmam que a interdição gira em torno de questões fundamentais como a autoridade do Presidente no controlo de fronteiras e no facto de haver descriminação contra os muçulmanos. A Lei Federal confere ao Presidente o poder de impedir a entrada “de quaisquer estrangeiros” que “possam prejudicar os interesses dos Estados Unidos.” Mas a mesma lei proíbe a descriminação de imigrantes com base na nacionalidade ou no local de nascimento.”

A reacção de Yates deve merecer admiração. Não teve medo de perder a sua posição e defendeu a Lei, e este é precisamente o espírito que um Procurador Geral deve ter. A natureza da Lei não é o uso da força, mas sim o uso da verdade e da lógica para persuadir o Tribunal a tomar a decisão justa. É a forma de resolver uma disputa pacificamente. Se o Procurador Geral se deixar amedrontar todos os cidadãos americanos serão prejudicados.

Segundo os media, Yates não quis deixar a resolução do dilema ao seu sucessor. Yates demonstrou a sua lealdade ao povo americano. Os jornais já se referem a este caso como “O Massacre de sábado à noite II”, o que é positivo para Yates. A Procuradora demonstrou ter todas as qualidades que alguém na sua posição deve ter.   

Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

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