China / Ásia MancheteChina | Natalidade aumentou 5,7 por cento depois do fim da política de filho único Hoje Macau - 19 Dez 201620 Dez 2016 Depois de mais de três décadas com uma política de planeamento familiar muito restritiva, a China acabou com a política de filho único há um ano. A natalidade subiu e muitas pessoas que não se puderam registar constam agora dos assentos de nascimento. Mas existe um enorme problema para resolver: há 13 milhões de vidas que não sabem como recuperar o tempo perdido [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] China termina este ano – o primeiro em que todas as famílias estiveram autorizadas a terem dois filhos depois de mais de três décadas de política de filho único –, com 17,5 milhões de nascimentos, o que representa um crescimento anual de 5,7 por cento. O número de nascimentos é o maior registado pelo país este século. O número, revelado pelo diário oficial Global Times, compara com os 16,55 milhões de nascimentos registados no ano passado, e demonstra um “crescimento estável” da natalidade após a flexibilização das políticas demográficas. Além disso, está de acordo com as expectativas, segundo responsáveis da Comissão de Planeamento Familiar e Saúde que, na semana passada, se reuniram para analisar os primeiros efeitos destas reformas. Os segundos filhos que nasceram em 2016 têm, à partida, um destino bem diferente daqueles que, de 1978 para cá, foram tidos por casais que já tinham uma criança. O fim da política de filho único veio acabar com um problema para muitas famílias e permitir o registo de pessoas que, até agora, não existiam para as autoridades, mas há um problema que atravessa já duas gerações que parece ser difícil de resolver: as pessoas que, por terem vivido na sombra, perderam a possibilidade de estudar, de arranjar um emprego, de terem um vida normal. A residir em Pequim há 23 anos, Li Xue nunca frequentou uma escola, nem sequer durante um dia. A China tem um sistema de educação que prevê nove anos de ensino gratuito, mas Li ficou de fora do esquema. Também nunca teve, em 23 anos, qualquer apoio da segurança social. Não tinha autorização para casar, encontrar um emprego ou abrir uma conta bancária. Li Xue é a segunda filha dos seus pais. Por causa da política de filho único, em vigor entre 1978 e 2015, a jovem não fazia parte dos números oficiais da população chinesa. Li contou à Reuters que os pais tentaram registá-la quando nasceu na esquadra da polícia, mas os funcionários recusaram o pedido e pediram uma carta de autorização da comissão de planeamento familiar local, um requisito essencial para se ter um segundo filho. Sem carta para mostrarem às autoridades, os progenitores da jovem tinham de pagar uma avultada multa para poderem registar a filha. Sem possibilidades para tal, Li Xue não entrou nos registos de nascimento chineses. Ao longo dos anos, a família fez vários esforços para legalizar a situação da jovem. Com o anúncio do fim da política de filho único e a autorização para um segundo descendente, Li conseguiu finalmente obter um documento que prova a sua existência. A mudança de política do controlo da natalidade fez com que pessoas na situação desta jovem tentem agora recuperar os anos perdidos, ainda que com a sensação de que o reconhecimento oficial do direito à existência chegou demasiado tarde e sem a certeza de que as autoridades as vão ajudar a recuperar o que ainda for possível reaver. Li Xue não pôde ter uma educação formal e lutou para aprender sozinha, recorrendo aos livros da biblioteca que eram requisitados em nome da irmã mais velha, uma vez que a família não tinha condições financeiras para contratar um professor particular. “A minha mãe foi despedida do trabalho porque eu nasci”, conta a jovem, numa entrevista na casa onde a família vive em Pequim, uma habitação sem casa de banho e com um duche improvisado. “Tínhamos de viver, os quatro, com o salário muito baixo do meu pai.” A mãe de Li, Bai Xiuling, recorda que a filha costumava chorar quando via as outras crianças a caminho da escola. “Ela queria estudar, mas não podia. A minha filha perdeu nove anos de ensino gratuito. Não há dinheiro que possa comprar o tempo que perdeu e que já não volta”, afirma a antiga operária fabril. São 13 milhões no escuro De acordo com os censos mais recentes, conduzidos em 2010, a China tem 13 milhões de cidadãos na situação de Li Xue, sem estarem registados – é quase um por cento da população do país. A política do filho único foi uma implantada pelo governo da República Popular da China nos finais da década de 1970 com o objectivo de reduzir o crescimento populacional e facilitar o acesso da população do país a um sistema de saúde e educação de qualidade. “A maior parte destas pessoas são crianças que nasceram enquanto a política de filho único esteve em vigor”, explica Jiantang Ma, o homem que liderava o Gabinete Nacional de Estatísticas da China aquando da realização dos censos. Um estudo feito no ano passado pela Academia de Pesquisa Macroeconómica, sob a alçada da Comissão para a Reforma e o Desenvolvimento Nacional, permitiu concluir que quase metade dos cidadãos chineses que não estão registados são analfabetos ou não têm qualquer tipo de educação formal. Durante os anos de vigência da política de filho único, os segundos filhos não podiam ser registados no sistema de residência do país, a não ser que fosse paga uma pesada multa, uma regra que foi seguida com raras excepções. Também os filhos nascidos fora do casamento são considerados uma violação das regras apertadas de planeamento familiar, pelo que os casais que não contraíram matrimónio são obrigados a pagar uma multa para registar os filhos, dinheiro que nem sempre têm. A China é dos poucos países do mundo com um sistema de registo de residência – o “hukou” – que contém informação como nascimentos e casamentos. Uma pessoa sem um “hukou” não tem acesso a serviços públicos (como educação e sistema de saúde) e está impedida de casar, de encontrar um emprego e até de abrir uma conta bancária. A ligação entre a “política de filho único” e o “hukou” é controversa, com as autoridades governamentais chinesas a dizerem que o sistema de registo de residência é aberto a todos os cidadãos, sem quaisquer pré-requisitos. Mas as famílias afectadas argumentam que há uma ligação clara. “Apesar de o ‘haikou’ e a política de filho único não deverem estar juntos, as autoridades locais têm relacionado estes dois aspectos durante anos porque descobriam que é uma forma de obrigar as famílias a obedecerem à lei de planeamento familiar”, comentou à Reuters Youshui Wu, responsável por um escritório de advogados em Zhejiang. Youshui Wu, que ajudou muitos casais chineses a registarem os segundos filhos, acrescenta que existe ainda em torno desta questão um lado económico: as multas pesadas a que estavam obrigados os casais prevaricadores eram uma fonte lucrativa de receitas para as autoridades locais. Casa de portas fechadas Dados recolhidos pelo advogado em 24 governos ao nível provincial, disponibilizados pelas autoridades, mostram que, só em 2012, a China arrecadou mais de 20 mil milhões de yuan em multas pagas por casais que tiveram um segundo filho sem autorização prévia. “Nenhum destes governos foi capaz de fornecer informações sobre o modo como estas verbas foram aplicadas”, explicou Wu. Wenzhuang Yang, um alto responsável da Comissão Nacional de Planeamento Familiar e Saúde, nega que a “política de filho único” e as punições que lhe estão associadas tenham contribuído para impedir o registo a milhões de cidadãos. Numa conferência de imprensa este ano, o responsável disse que a comissão fez o que podia para remover os obstáculos criados pelas autoridades locais no registo de residência e que muitos cidadãos sem assento de nascimento foram agora incluídos no sistema ‘hukou’. Chunyan Liu, uma professora de Inglês solteira, conta que não teve capacidade financeira para suportar a multa que teria de pagar pelo nascimento da filha, que esteve sete anos sem ser registada. Em Abril deste ano, a criança passou a constar dos registos nacionais. “A multa em Pequim era muito elevada. Pensei muitas vezes nisso, mas era impossível deixar as autoridades saberem que tive uma filha sem permissão”, diz. Por não ter um ‘hukou’, a filha da professora não teve acesso a cuidados de saúde pagos pelo Governo. Também não podia comprar um bilhete de comboio ou sair do país. “Quando outros pais levavam as crianças à Disneylândia de Hong Kong, nós não nos atrevíamos sequer a pensar nisso.” “A minha filha tem agora sete anos e nunca pôs os pés fora de Pequim”, relata ainda, confessando que continua preocupada com a possibilidade de as autoridades lhe exigirem o pagamento da multa. Apesar de toda a história pessoal que carrega, Liu considera ter “sorte”. No ano passado, tentou encontrar uma escola para a filha estudar, mas não conseguiu, por causa da falta de um registo de residência. “Agora, ela tem tudo aquilo que precisa para poder frequentar uma escola pública”, diz. A filha de Liu ainda vai a tempo de não ficar excluída de educação. Mas o destino de muitos foi bem diferente: os investigadores da Academia de Pesquisa Macroeconómica dizem que mais de metade dos chineses sem registo já fizeram 18 anos. Muitos destes adultos não só viram vedados o acesso à escola, como tiveram dificuldades adicionais na procura de emprego, uma vez que não dispõem de documentação legal para serem contratados. O trabalho de investigação dá o exemplo de Liu Wei, da província de Henan, que não teve escolha: foi trabalhar para uma mina de carvão. Depois de a exploração ter fechado portas, ficou desempregado, uma vez que não conseguia arranjar um novo posto. Acabou a dormir na rua durante cinco anos. Em 2012, a China arrecadou mais de 20 mil milhões de yuan em multas pagas por casais que tiveram um segundo filho sem autorização prévia. Os filhos de quem não existe O isolamento social é um problema que não pertence a uma só geração, com os investigadores a mostrarem dúvidas sobre os efeitos do fim da política de filho único para esta fatia da população. “Muitas pessoas sem registo cresceram e começaram as suas próprias famílias, dando assim início à segunda geração de crianças sem documentação”, escrevem os autores do relatório da Academia de Pesquisa Macroeconómica. Wenzheng Huang, especialista em demografia e antigo professor assistente em Harvard, explica que Pequim tentou encontrar formas de resolver o problema depois de os censos de 2010 terem colocado em destaque o facto de existirem 13 milhões de cidadãos chineses sem registo. “Tanto quanto sei, muitos desses segundos filhos ou filhos fora do casamento têm agora um ‘haikou’. O Governo Central começou a tratar do registo de residência de forma séria”, afirma o académico. “As autoridades reconheceram que a existência de tantas pessoas sem registo é um problema muito sério. Não só representa um preço muito elevado no desenvolvimento social, como tem causado uma enorme dor a muitas famílias.”