VozesA Propósito de Barragens de Maré Mário Duarte - 7 Dez 201617 Dez 2016 [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o ano de 1953, a Holanda foi fustigada por inundações de uma magnitude de que não havia memória, que dizimou vidas e bens a que nenhuma nação poderia ficar indiferente. Da memória nacional fazem parte documentários desses acontecimentos e também o discurso de uma rainha emocionada, que prometeu a toda a nação que o mesmo nunca mais voltaria a acontecer. No parlamento holandês aprovaram-se seguidamente moções que visavam canalizar grande parte dos recursos nacionais para essa prioridade. Disso resultou uma campanha de iniciativas chamada as Obras do Delta, que engloba uma extensão de lagos interiores e de canais, complexamente interligados, que resultam principalmente de três rios internacionais que desaguam na Holanda. Obras que se traduziram no alteamento de diques e na construção de robustas barragens marítimas. Ou seja traduziram-se essencialmente em infra-estruturas. No decorrer dos anos a Holanda ganhou tal confiança nas suas protecções que, presentemente, a maior parte dos recursos económicos nacionais reside e concentra-se em zonas que seriam necessariamente fustigadas por inundações, caso essas protecções não existissem. Ou seja, zonas que presentemente são de alta vulnerabilidade e de alta exposição, face aos recursos que aí se acumulam e ao número das pessoas que aí residem. Por outro lado, e à medida que essa confiança aumentava, as novas gerações perderam capacidades, nomeadamente a resiliência humana, i.e. a capacidade dos humanos conviverem com o imprevisto, o transtorno, a perturbação do quotidiano e de serem capazes de se manterem funcionais nessas situações. Em verdade, o estilo da vida que tendencialmente se divulga nos media, e que para muitos serve de referência no quadro das suas aspirações, é de que tudo está assegurado, que nada de imprevisto poderá acontecer e, se por acaso acontecer, está coberto pelo Estado ou por seguros, ou a culpa é necessariamente de alguém. Foram os primeiros avisos do aquecimento global e da consequente subida do nível dos mares e oceanos que na Holanda lançou o alarme sobre esse cenário de segurança. Ou seja, a possibilidade de os parâmetros que definiram as defesas perfeitas da Holanda já poderem ser outros e as mesmas já não serem mais seguras. Por outras palavras, a possibilidade de o clima e as suas manifestações não serem estacionários, i.e. de poderem variar em parâmetros diferentes dos estabelecidos estatisticamente. Ou seja, um verdadeiro ovo de Colombo para quem conheça os ciclos da terra ou admita que a dimensão da humanidade não se resume aos nossos dias. Mas também uma possibilidade que inspirou uma mudança radical de estratégia que passa também pela recuperação das qualidades de resiliência da população em conviver com a perturbação, nomeadamente conviver com cheias. Admitiu-se que o cenário de guerra ao clima poderia não ser a solução mais ajustada, senão mesmo derradeiramente inglória, como inglório poderia ser altear diques ou construir barragens cada vez mais fortes, eternamente ou permanentemente, para assegurar um quotidiano imperturbável. Mas a mudança desta vez não poderia ser centralizada no Estado, mas necessariamente disseminada. Disso resultou a adopção de novas rotinas. Os espaços térreos dos edifícios não guardam bens valiosos nem albergam actividades que não podem ser perturbadas, por exemplo, postos de polícia, cuidados médicos ou centros de operação de emergências. Nesses espaços os materiais não se danificam com a água, os circuitos eléctricos correm pelo menos a 1m de altura do chão e as soleiras das casas permitem montar dispositivos estanques para que a água não entre. Sacos de areia voltaram a ser um utensílio de casa. As caves passaram a ser construídas como verdadeiros submarinos, com portas estanques que permitem isolar sectores em caso de inundação, dispondo de uma escapatória própria. Algumas passaram a ser bacias de retenção, para que possam inundar antes de outros espaços inundarem, permitindo um intervalo de tempo para resgate ou para escapamento. Circulações de emergência elevadas servem de escapatória em caso de cheia, da mesma maneira que caminhos de evacuação nos edifícios, conduzem pessoas a pontos de refúgio em caso de incêndio. Marcam-se níveis nas paredes dos edifícios que alertam a população do nível a que a água pode chegar e ninguém leva a mal que alguém entre de galochas num restaurante elegante, para um almoço de negócios, num dia de cheia. Mas alteração de circunstâncias que determinou também novas estratégia de soluções infra-estruturais. As inundações de zonas urbanas junto a rios eram na maior parte das vezes consequência de espaços naturais de inundação terem sido suprimidos aos rios. Disso resultou a necessidades de disponibilizar novos espaços de inundação, não necessariamente os mesmos originais, para que se pudesse guardar temporariamente a água das cheias, e se poupasse as cidades, programa a que se chamou “Espaço para os Rios”. Já no caso das cheias dos estuários, por resultarem de condições de maré que se resolvem na maior parte dos casos em meio dia, a possibilidade de guardar temporariamente essa água, por algumas horas, permite adiar a inundação. Nos estuários, uma inundação adiada é, na maior parte das vezes, uma inundação evitada. No que se prende com as zonas costeiras o risco crescente resulta da regularização dos rios que já não transportam a areia necessária, que o mar distribui ao longo da costa e o vento possa construir dunas. Disso resultou a necessidade de compensar o fornecimento de areia à costa, em locais identificados por adequadas para que, a partir daí, as coerentes marítimas distribuam essa areia ao longo da costa e se formem dunas. Programa a que se chamou “trabalhar com a natureza”. Ou seja, intervenções que tendo características infra-estruturais, não têm o impacte, nem o carácter de guerra à natureza, antes de colaboração com processos naturais que hoje se conhecem melhor. Mas mudanças de estados de coisas, no que se prende com a gestão territorial, também não são estranhas à RAEM. Em verdade, no passado, a construção de aterros por enchimento, em vez de construções palafitas, passou a ser vista como preferível porque estreitavam os canais e isso aumentava a velocidade do caudal e a limpeza dos fundos. Ou seja, a possibilidade de dragagens menos frequentes para assegurar a navegabilidade desses canais. Mas a questão da inundação natural do delta pelo chamado “prisma de maré”, ou seja, o volume de água salgada que entra nos rios em cada maré alta, não era necessariamente constrangimento porque, a montante do Rio das Pérolas, havia espaço suficiente para essa água salgada, ou já salobra, se espraiar. Pese algum prejuízo para culturas, ou para os pontos de captação de água potável. Mas foi o grande surto de expansão urbana da província do Guandong o ponto de rotura para as zonas mais baixas da RAEM, quando esses ajustamentos naturais deixaram de ser possíveis. Todos os terrenos de inundação, que permitiam ao “prisma de maré” se espraiar no delta, foram ocupados com aterros. Esses aterros foram construídos a cotas mais elevadas para que o volume de água se acomodasse numa largura de canal mais estreita. Naturalmente, toda a vulnerabilidade se transferiu para os aterros mais antigos, por esses serem mais baixos, ou seja o Porto Interior. Por isso, a necessidade de barragens de maré no Delta, que sem dúvida constituirá entrave para qualquer ressurgimento desejável de tráfego fluvial, é infra-estrutura que pode ser necessária, mas que não deve servir para que se possa continuar fazer mais do mesmo em âmbito de gestão territorial e do meio hídrico, ou que dispense integração com outras medidas urgentes. Na falta de outras soluções, as barragens de maré no Delta são mera declaração de guerra à ecologia, tendo por pressuposto que a magnitude das munições do oponente (a maré), no futuro, será a mesma e só essa. Qualquer cooperação regional não será sensata se se nortear apenas por soluções de infra-estruturas, pondo de lado a coordenação territorial conjunta da bacia hidrográfica, das áreas, dos níveis e das modalidades de aterros a construir. Nomeadamente, aterros feitos por enchimento, em vez de estruturas palafitas, que só contribuem para a ocupação e estrangulamento do Delta, onde se concentra tanto a água da maré de jusante, com a água dos degelos de primavera a montante, por vezes as duas em simultâneo. Aterros que fazem uso de volumes exorbitantes de areia, cada vez mais dispendiosa, e que muitas vezes faz falta nos sítios de onde é retirada.