Entrevista MancheteJorge Forjaz, autor da II edição da obra “Famílias Macaenses”: “É a família que dá braços” Isabel Castro - 29 Nov 201629 Nov 2016 Há 20 anos, publicou um trabalho que julgava ter dado por concluído. Mas duas décadas depois do “Famílias Macaenses”, Jorge Forjaz apresentou uma reedição, que só a Internet tornou possível. São mais 80 capítulos de um livro onde cabem os filhos da terra que quiseram fazer parte dele [dropcap]N[/dropcap]a sequência de uma iniciativa do Albergue SCM, surgiu a oportunidade de fazer uma nova edição, revista e aumentada, de uma obra que já era considerável. Como foi fazer este trabalho? Vim cá, por iniciativa do Albergue, fazer uma conferência sobre os 15 anos da publicação das “Famílias Macaenses” – uma reflexão sobre o efeito do projecto, o impacto que tinha tido nas comunidades macaenses. A sala esteve cheia, trocaram-se opiniões e, a certa altura, Carlos Marreiros perguntou-me se eu nunca tinha pensado em fazer uma segunda edição. É uma obra que, do ponto de vista gráfico e editorial, não é fácil, não se arranja um editor com facilidade. Além disso, tinha encerrado o meu capítulo de Macau, estava já dedicado a outro tipo de investigações, e tinha oferecido toda a documentação a uma universidade em Los Angeles, ao arquivo “Old China Hands”, que tem como objectivo a preservação da memória ocidental na China. Também não se justificava actualizar a obra – que são três grossos volumes – só para acrescentar uns casamentos e uns nascimentos. Tinha de haver realmente uma alteração muito substancial para justificar a reedição. A minha primeira reacção foi dizer que não seria possível. Era preciso que houvesse nova documentação, novas fontes para explorar que permitissem alterar substancialmente o texto original. Que alteração foi essa que justificou a reedição? Houve um aspecto nestes últimos 20 anos que alterou tudo, sobretudo para uma pessoa que faz uma obra como a minha, sobre uma comunidade que está espalhada pelo mundo inteiro. Conheço muitos genealogistas em Portugal que fazem trabalhos sobre Évora, Estremoz, eu fiz sobre Angra do Heroísmo e sobre a Terceira – é um trabalho sobre pessoas que vivem todas na Terceira. É mais complicado fazer um estudo sobre uma comunidade cuja origem é este pequeno território, mas o palco em que se movimenta é o mundo inteiro. Há 20 anos, o contacto com todas essas pessoas foi feito como se fazia no séc. XIX: através de centenas ou até mesmo de milhares de cartas para aqui e para ali, com os encargos e, acima de tudo, com a demora que isto implica. Escreve-se uma carta, está-se três meses à espera da resposta, que não é satisfatória, escreve-se outra e, com isto, passou meio ano. Nestes 20 anos, aconteceram a Internet e o email. A Internet permitiu o acesso aos arquivos. Usando o exemplo de uma família de Macau: sabia que o primeiro [elemento da família] tinha nascido em Lisboa. Tomava nota de todas essas coisinhas, como vivo nos Açores tinha de ir a Lisboa, estava lá 15 dias, ia aos arquivos de Lisboa; depois apanhava um comboio e estava dois dias no Porto, mas havia algo em Guimarães. Alugava um automóvel e ainda ia lá a ver o arquivo. Hoje não preciso de nada disso: estou nos Açores, em minha casa, abro a Internet e encontro a documentação toda online. Faço quase tudo em casa. Foi possível descobrir então mais informação sobre as famílias macaenses. Fez uma diferença enorme, porque permitiu-me o acesso a uma documentação que nunca tinha visto, porque não era possível ver. Quando se vive longe, como é o meu caso, não posso andar de um lado para o outro constantemente – teria custos astronómicos e era fisicamente impossível. Para aquilo que era possível fazer entre 1990 e 1996, hoje, olhando para trás, parece-me impossível ter conseguido fazer este trabalho. Viajei pelo mundo inteiro antes da publicação: fui à Austrália, ao Brasil, à América do Norte – sobretudo Califórnia, Toronto e Vancouver –, a Singapura. Percorri tudo isto à procura do rasto de toda esta gente. Não tinha sequer um computador portátil, só tinha um em casa nos Açores, o que significa que, quando vinha para Macau para trabalhar, tinha de imprimir tudo e andar com os papéis atrás de mim. Lembro-me de me perguntarem na Califórnia quantas pessoas tinha a minha equipa. E eu fiz assim [abriu as mãos]. Disseram-me: ‘Só 10 pessoas?’. E eu respondi: ‘Não, dez dedos”. Realmente estávamos na Idade da Pedra comparando com o que acontece hoje. O acesso à nova documentação permitiu-lhe encontrar que tipo de informação? Permitiu perceber quem foi a primeira pessoa [da família] a vir para Macau – aconteceu em muitos casos. É algo que as pessoas gostam muito de saber – quem são os seus antepassados, de onde é que vieram. Nenhuma das pessoas que vieram para cá teve a consciência de que estava a contribuir para a construção de uma comunidade. E para a globalização. Vinham para cá para o serviço militar – acabava e regressavam a Portugal, como aconteceu com a maioria – ou vinham como juízes, vinham fazer uma comissão de serviço. Chegavam cá e acabavam por ficar. Nunca ninguém veio de Portugal para ficar em Macau o resto da vida, para casar aqui e dar início a uma nova família. Foi sempre o produto do acaso. Casavam e ficavam, até porque quando chegavam cá solteiros ficavam imediatamente debaixo de olho dos pais das meninas solteiras que cá viviam, porque não havia muitos candidatos. Os que eram militares de carreira faziam comissões bem maiores do que era costume, mas depois acabavam por regressar a Portugal. Por exemplo, a família Senna Fernandes tem dois ou três casamentos com pessoas de Portugal que fizeram aqui as suas comissões, e acabaram por ir todos para Portugal. Mas os que vinham em serviço militar, os militares que não eram profissionais, quando passavam à disponibilidade saíam da tropa e estabeleciam-se. Já tinham arranjado uma namorada, casavam com uma chinesa ou com uma macaense e nunca mais regressavam. A maior parte dessa gente nunca mais voltou a Portugal – quer do séc. XVII, do séc. XVIII, do séc. XIX e mesmo do séc. XX. Isso é que é interessante: uma comunidade que vinha e não regressava, mas mantinha sempre acesa a chama portuguesa. Há aqui pessoas que falam português, têm nomes portugueses, são católicas, cantam o hino nacional, e o antepassado deles que veio para cá nasceu em 1720 ou em 1770. A genealogia anda à procura de datas e traçam-se percursos a partir daí, mas é possível ir mais longe e construir uma história. Claro. Fala-se muito em história – na história económica, na história da arquitectura… Mas por trás de tudo isto tem de haver a história das pessoas, porque sem elas não há economia ou arquitectura, não há nada, e tudo se faz para as pessoas. Quem é essa gente? Como é que essa gente vivia aqui? Que tipo de vida é que fazia? Quantos filhos é que tinham? Casavam ou não? Os filhos morriam muito. Penso muitas vezes no aspecto da mortalidade infantil: hoje, temos um filho ou dois; antigamente as pessoas tinham 10 e 15 filhos, mas morriam oito, nove ou 10. Quem é que hoje poderia tolerar um desgosto desses? É necessário que não se sofresse na altura o mesmo que hoje, que é um desgosto para a vida inteira. Aquelas famílias todas tinham muitos filhos que morriam, mas a sociedade não vivia toda em luto permanente. Tinha de haver um sistema de autodefesa – um antropólogo poderá estudar isso melhor – para enfrentar a morte das crianças. Voltando à Internet. Além da consulta dos arquivos, permitiu-lhe evitar o trabalho de envio de centenas de cartas. Quando decidi fazer a nova edição, mandei uma mensagem para as casas de Macau do mundo inteiro, pelo que em cinco minutos ficaram a saber que havia este projecto. Desafiei-as para que comunicassem aos associados que este trabalho ia ser feito para que, sabendo da primeira edição, do que lá faltava e do que não chegou a ser publicado, da família que não chegou a ser incluída ou das datas que entretanto aconteceram, me mandassem as informações. Podia ter funcionado melhor, porque há sempre pessoas que deixam para amanhã e acabam por não enviar. Há muita gente que vai ficar com pena agora quando vir o livro, que podia ser maior, sendo que é enorme quando comparando com o primeiro. Na primeira edição aconteceu o mesmo: escreveram-me cartas no dia a seguir à publicação, a dizerem-me que quando houvesse uma reedição tinha ali novos dados, que eu já tinha pedido mas que nunca tinham mandado, talvez por não acreditarem que o livro iria ser publicado ou não saberem quem era o autor. Agora todos sabem quem sou e acreditam no projecto. O outro aspecto importante foi a organização do Arquivo Histórico de Macau que, nestes últimos 20 anos, recebeu imensa documentação nova, está muitíssimo bem organizado e permitiu-me trabalhar lá, coisa que praticamente não fiz há 20 anos. No contacto que tem com os membros das famílias, e atendendo que a história social de Macau é muitas vezes marcada por alguma ilegitimidade – filhos de vários casamentos em simultâneo, por exemplo – sentiu dificuldades no contacto com os descendentes? Mostram-se disponíveis para falar da história familiar? Raramente as pessoas têm informações muito precisas sobre os antepassados – sabem os pais e os avós, naturalmente, mas se falarmos do quarto, quinto ou sexto avô, de quem é que veio para Macau, não sabem. Esta era a realidade antes da publicação do “Famílias Macaenses”, porque agora sabem. Mas raramente peço informação sobre os antepassados, porque as pessoas – com a melhor boa vontade e com uma enorme boa-fé – dão informações erradas. Por norma, só falo com as pessoas sobre os antepassados depois de já saber mais do que é suposto elas saberem. Normalmente o que peço são dados sobre os vivos; os mortos é negócio meu. Quanto às ilegitimidades e aos vários casamentos, em Macau há uma situação muito original: os casamentos segundo os ritos católicos e os casamentos segundo os ritos chineses. O português, que é um especialista em intercomunicação à escala universal, aproveitou com grande vantagem para ele os ritos chineses. Então, tinha um casamento português e mais três ou quatro chineses. Quando as pessoas sabem e as coisas são muito claras, não há problema; às vezes, há uma certa surpresa quando lhes digo que o avô e a avó não eram casados. Hoje em dia, é banal, mas antigamente não era. As pessoas reagem pelo espírito da época e não pelo espírito de hoje. Mas isso nunca foi um problema: se virmos bem, praticamente todas as famílias foram marcadas por isso. O que é excepção passa a ser quase a regra e, sendo a regra, faz parte das características do ser macaense. Neste trabalho sobre Macau, há alguma história que o tenha marcado de forma especial? São tantas. A obra tem mais de 380 capítulos. Como se sabe, o nome Silva é dos mais comuns em Portugal. Três pessoas que se chamam Silva não são necessariamente parentes. Em Macau, há 40 famílias Silva que não têm nada que ver umas com as outras. Só o capítulo Silva são quase 400 páginas – é um livro. Isto serve para dar ideia da dimensão. Quanto às histórias, quando cheguei cá, para mim Macau era só isto. Tinha uma vaga ideia de que havia uns macaenses em Hong Kong e mais nada. Para mim, Macau eram três ou quatro famílias de que ouvia falar em Portugal: os Senna Fernandes, os Nolasco e pouco mais. Mas, como noutros sítios, aqui havia a alta sociedade, a média sociedade, a baixa sociedade – não faço juízos de quem é quem. A mim interessa-me se responde àquilo que é a minha definição de macaense. Lembro-me de ter falado com uma pessoa a quem disse que estava a pensar fazer um trabalho sobre as famílias macaenses, que me disse: ‘Não é preciso, isso já está feito. O Padre Manuel Teixeira já fez isso. Somos só seis ou sete famílias’. Deste número passaram a 15, depois a 20, a 30 e acabou com 280 ou 300 – já nem sei quantas são. Depois é que tomei consciência de que, para perceber Macau, é preciso perceber Cantão, Hong Kong e Xangai. São os quatro pontos essenciais da comunidade macaense. O que é interessante verificar é como todas estas pessoas, dispersas desta maneira, mantiveram sempre uma ligação fortíssima com Portugal. Uma das histórias mais engraçadas tem que ver com a revolução republicana de 1910: logo a seguir à proclamação da república houve uma festa no Clube Lusitano de Xangai em que já lá estava a bandeira verde e vermelha. E mais: houve uma família de lá que baptizou o filho com o nome ‘Bernardino Machado’, o nome do primeiro ministro dos Negócios Estrangeiros da república. As pessoas imediatamente assumiram a nova situação portuguesa, pessoas que eram bisnetas e trinetas de portugueses, e que nunca foram a Portugal. Até que ponto pode ser importante o conhecimento da história pessoal? O que se pode retirar hoje de se saber de onde se vem? Um dos países da Europa onde há mais estudos genealógicos é a Polónia. Porquê? É o país europeu mais sacrificado nas suas fronteiras: a Rússia retirou-lhe um bocado, a Alemanha outro, deixou de ser independente, depois avança a fronteira, depois recua a fronteira. Mas as pessoas vivem sempre na mesma cidade: um dia eram alemãs, noutro dia eram russas, o nome tinha de ser mudado, depois emigram para a América e já nem sabem bem o que é que são. Vivem obcecadas pelas suas origens. Com fronteiras definidas há mil anos, não temos essa noção. As pessoas podem não saber a sua genealogia, mas têm a perfeita consciência da sua origem. O polaco tem imensas angústias existenciais. A genealogia é a primeira explicação para saber quem sou. Há umas pessoas que me dizem que não querem saber, que tanto lhes faz. Mas se lhes disser que a família é uma cambada de bandidos, dizem-me logo que não me autorizam que fale mal dela – afinal, a família tem um valor, que é um sentimento de pertença a uma comunidade, a uma terra, a uma tradição, a uma religião, a uma gastronomia, a uma língua. É a família que dá braços para prender tudo isto. A maior parte das pessoas tem uma pequena memória familiar, mas tem sempre grande curiosidade em ir um pouco mais longe. A genealogia dá resposta à pergunta que cada um faz a si próprio: quem sou eu? Nestas famílias macaenses, só houve um ou dois casos de pessoas que não queriam saber, que me disseram que não me respondiam.