VozesEm nome do povo Rui Flores - 24 Out 2016 [dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi como se o mundo – leia-se a imprensa internacional do “mainstream” – tivesse acordado para o populismo apenas quando Donald Trump atingiu as primeiras páginas dos jornais. Nem todos os eventos, semelhantes na sua essência, são valorados da mesma forma. Naturalmente. Um atentado terrorista que mata uma pessoa na Europa recebe cobertura jornalística mais extensa do que um outro evento no Afeganistão que tenha feito 200 vítimas. O mundo é injusto. Mas esta é a lógica da comunicação social. A atenção que tem sido dada ao primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban, e ao seu discurso e políticas contra os imigrantes, ou ao presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, e à sua campanha pela eliminação de traficantes e consumidores de droga, é menor do que a que tem recebido Donald Trump, candidato republicano à presidência dos Estados Unidos da América. Mas a atenção mediática dedicada à campanha presidencial norte-americana tem o mérito de ter posto a academia a reflectir sobre as diferentes dimensões do populismo. A edição de Novembro-Dezembro da Foreign Affairs dedica, por exemplo, um número considerável das suas páginas a explicar o fenómeno. Recorre a vários pesos pesados da ciência política e comunicação, entre os quais Fareed Zakaria, apresentador do programa GPS da CNN, para fazer um ponto da situação sobre o populismo no ocidente. Entre discussões teóricas sobre as principais componentes do populismo – o discurso anti-elite, anti-sistema, a defesa do homem comum contra os poderosos, a invenção de inimigos externos contra os quais nos devemos unir para garantir a nossa sobrevivência – são avançados, também, dados actualizados sobre a chegada ao poder de partidos populistas no continente europeu. Desde os anos 1990 que o populismo ganha terreno na Europa, quer à esquerda quer à direita. Com a queda do Muro de Berlim, o fim da história e uma aproximação ao centro dos principais partidos – que foram implementando uma agenda reformista alegadamente neoliberal, esbatendo alegadas diferenças ideológicas entre centro-esquerda e centro-direita –, o espaço do populismo tem aumentado. Os partidos populistas controlam parlamentos em seis países: Grécia, Hungria, Itália, Polónia, Eslováquia e Suíça. O resultado de todas as eleições na Europa nos últimos cinco anos, 16, no total, dá aos movimentos populistas, de extrema-esquerda e de extrema-direita, uma média de 16.5 por cento dos votos. Pelo menos um partido populista em cada um dos países conseguiu mais do que 10 por cento dos votos. As causas estão identificadas e parecem estar aí para ficar. A globalização tem contribuído para a deslocalização de capital e de empresas, conduzindo a despedimentos de onde saem. Quando as multinacionais se mudam para outras latitudes, onde os salários são mais baixos, mandam para o desemprego milhares de pessoas e levam ao encerramento de outras empresas que não conseguem competir com as transnacionais. A migração que tanto tem preocupado a Europa nos últimos dois anos – devido ao conflito na Síria e à consequente onda de migrantes “maquilhada” somente por a União Europeia ter “comprado” à Turquia a manutenção de refugiados no seu território – é apenas uma consequência da globalização. E é um fenómeno que se repete um pouco por todo o lado. No Reino Unido, diz a narrativa populista, são os polacos que “roubaram” postos de trabalhos, sobretudo indiferenciados, aos britânicos. Noutros países, como em Portugal, sobretudo nos serviços, dominavam os imigrantes do Leste da Europa e do Brasil. O discurso contra a imigração tem estado no centro da campanha política nos Estados Unidos, pela mão de Trump, mas também já esteve no centro da discussão durante a campanha do referendo que, em Junho, decretou a saída do Reino Unido da União Europeia. Mas a globalização fez da imigração a regra. Os avanços tecnológicos têm igualmente contribuído para uma diminuição geral de postos de trabalho. Basta imaginar, por exemplo, o que acontecerá com os motoristas profissionais quando os carros deixarem de ser conduzidos por pessoas – um cenário de ficção científica que a Google e a Uber estão a transformar em realidade. A pressão demográfica que é colocada aos governos dos vários países desenvolvidos – sobretudo na Europa, onde o saldo demográfico, com a esperança de vida a aumentar e a taxa de natalidade a diminuir – põe um travão a políticas expansionistas e faz aumentar a conta da solidariedade social. Os governos sejam do centro-esquerda ou do centro-direita não têm grande margem negocial, sobretudo quando têm de cumprir as regras orçamentais. A dívida pública média dos países europeus está nos 67 por cento do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto nos Estados Unidos se encontra nos 81 por cento. Ou seja, no caso da Europa, apenas um terço do que é produzido poderia ser usado para investir na expansão económica ou para ser redistribuído. Os governos estão pois manietados. Ou, na expressão em língua inglesa, é a política da TINA (“there is no alternative”). Veja-se, por exemplo, a incapacidade negocial do Syriza para com a União Europeia. A grande diferença entre esquerda e direita, salienta, por exemplo, Fareed Zakaria, já não é económica, é cultural. E ela que vai marcando a diferença entre os dois campos. Temas “fracturantes” como o aborto, o casamento homossexual ou a eutanásia são cada vez mais as questões fulcrais nas campanhas políticas. Todos estes factores têm levado ao florescimento do populismo. O voto de milhares de eleitores da classe média, habitualmente do centro político, em partidos de extrema-esquerda e de extrema-direita, radicais, racistas, xenófobos – veja-se por exemplo como em França a Frente Nacional de Marine Le Pen está a crescer –, deveria acima de tudo preocupar os partidos no poder e levá-los a apresentar alternativas sérias, credíveis, de forma a que os populistas, demagogos, não tivessem possibilidade de crescimento. Mas após décadas de apatia política, reforçada pelas similitudes dos principais partidos, a possibilidade de um homem (ou mulher), anti-sistema, anti-político, anti-elite, um homem do “povo” que quer fazer frente aos poderosos, começa a ter um apelo cada vez maior. Tudo em nome do povo, bem entendido.