Crise de valores

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] recente eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos da América veio reforçar a ideia de que vivemos tempos em que os valores estão em crise. A campanha e as propostas que o presidente-eleito norte-americano foi anunciando para o futuro do seu país e do mundo, são antes de mais exemplos típicos de populismo político. Eles incluem, entre outros, a ideia de que Trump é um impoluto, que representa todos os impolutos da nação, opondo-se aos poderosos e às elites; que é alguém que se assume como o verdadeiro representante da nação, que se levanta em nome de todos nós para enfrentar os outros, os que querem destruir a nação; alguém que preconiza soluções extremas para a resolução dos problemas que o país enfrenta. Os estados europeus da NATO querem continuar a beneficiar da protecção dos Estados Unidos? Vamos obrigá-los a pagar! Temos de acabar com a entrada de imigrantes ilegais nos Estados Unidos? Construa-se um muro. Todos estes exemplos que, de acordo com a doutrina, são casos evidentes de populismo político, põem em evidência o racismo, a xenofobia, a intolerância, o desrespeito pelo próximo, a falta de solidariedade. Enfim, constituem um verdadeiro ataque aos princípios basilares, por exemplo, da Organização das Nações Unidas (ONU) e dos valores que estiveram na base da construção da União Europeia (UE).

Por causa disto, muitos analistas das relações internacionais têm vindo a falar num regresso da realpolitik à cena internacional. Ou seja, estaríamos por estes dias a viver um retrocesso considerável na forma de gerir a coisa pública dos Estados. Em que as considerações morais e ideológicas estariam de um modo sistemático a soçobrar às de natureza prática.

Não se deve julgar, no entanto, que este sinal de “progresso” é algo exclusivo dos Estados Unidos de Trump. Cinco meses antes da vitória do magnata dos casinos e dos hotéis sobre Hillary Clinton, em Junho, a UE aprovou a nova estratégia global para a política externa e de segurança. Por iniciativa da alta representante para os negócios estrangeiros e de segurança, a italiana Federica Mogherini, a União reviu o documento estratégico em que estão plasmados os princípios que devem ser seguidos pela UE enquanto bloco no seu relacionamento com o “mundo exterior”. Mas, ao mesmo tempo que elenca um conjunto de prioridades, princípios, valores, interesses (é muito significativo verificar que os termos são usados indistintamente para assinalar a base programática da politica externa comum), a estratégia afirma, com grande pompa, logo nas primeiras páginas do documento, que as relações externas da União se regem por um certo “pragmatismo baseado nos princípios”.

E quais são os princípios da UE em 2016? Eles envolvem uma hierarquia de valores que inclui a paz e a segurança, uma ordem global baseada no Estado de direito, democracia e direitos humanos, economia de mercado e prosperidade. O que a estratégia não estabelece – e é algo que está dependente dos interesses momentâneos do clube dos 28 – é qual a ordem que prevalecerá em caso de conflito de interesses. Irá a UE continuar relações comerciais com ditadores que não estejam empenhados numa agenda que envolva o respeito pelos direitos humanos? Até agora a resposta da UE não tem tido grandes considerações pelas questões essenciais da lista que a própria União estabeleceu. E não há razões para crer que as coisas venham a mudar no futuro próximo. No fundo, o que a estratégia pôs preto no branco foi que as relações externas da UE continuarão a mudar de acordo com os interesses momentâneos da realpolitik.

O que este exemplo da UE demonstra é que a tendência veio pois de trás – até porque o documento aprovado em Junho demorou dois anos a ser elaborado e pretendeu responder a anseios e dificuldades detectadas há anos. Donald Trump não é, pois, o principal causador desta onda de choque em que parece que estamos a viver.

E outros choques que se possam vir a sentir não estão relacionados com a capacidade de os Estados Unidos influenciarem o resto do mundo. As pessoas foram votar em Norbert Hofer na Áustria, também porque estão fartas de como a política está a ser conduzida no seu país. Votaram contra o referendo constitucional na Itália não porque não queiram governos estáveis, mas porque também estão cansadas da forma como os principais partidos têm conduzido o país. Querem algo de novo. Não têm visto grande coerência na aplicação dos valores, princípios, prioridades nas últimas décadas. Estão, pois, fartas. De não poderem alterar as coisas. De o Estado social que as trouxe até aqui não estar a dar a resposta de que precisam.

Como escreveu esta semana no The Guardian Stephen Hawking, um dos grandes pensadores do nosso tempo, estamos a viver os tempos mais perigosos dos últimos anos. A elite, os partidos do centro têm de encontrar uma solução para a classe média que está todos os dias a perder empregos devido aos avanços tecnológicos, à computação, à inteligência artificial. Tudo isso tem levado ao aumento das vagas de migrantes que procuram nos países mais desenvolvidos um futuro para si e para as suas famílias. Contudo, sem valores, sem uma agenda que ponha os direitos humanos, a democracia e o Estado de direito no topo das prioridades, nada disso vai ser possível. Há pois um enorme espaço para que as surpresas que afectaram o nosso futuro colectivo com as votações do Brexit ou de Trump se repitam. Ainda não batemos totalmente no fundo.

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