Beidaihe

António Graça de Abreu

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s praias de Beidaihe estão ligadas à história recente da China. O marechal Lin Biao (1907-1971) foi um dos mais destacados comandantes militares e dirigentes da revolução chinesa, nomeado sucessor de Mao Zedong no Congresso do Partido em Abril de 1969. Logo depois azedaram as relações com Mao e hoje não restam dúvidas de que Lin Biao, com o seu filho Lin Liguo e a esposa Ye Qu, mais umas centenas de militares de sua confiança preparavam em Setembro de 1971 uma espécie de golpe de Estado que passaria pelo assassínio de Mao. Lin Biao e a família encontravam-se então exactamente em Baidaihe, fruindo as delícias deste afamado lugar e elaborando planos inconsequentes para aniquilar Mao e mudar a história da China. O complot foi descoberto graças à ingenuidade de Duoduo, a filha de Lin Biao que acompanhava o pai na estadia na praia e resolveu transmitir aos guardas pessoais do marechal as actividades do progenitor, pedindo-lhes mais protecção para o progenitor. Perseguidos pelas tropas fiéis a Mao, na noite de 13 de Setembro de 1971, Lin Biao, com o filho e a esposa correram para Shanhaiguan, o aeroporto que serve Beidaihe. Aí, um avião Trident voou com Li Biao e os seus em direcção à União Soviética. No aeroporto de Shanhaiguan, na urgência da fuga, não houve tempo de reabastecer convenientemente o avião que largou com os depósitos de gasolina com menos de metade da sua capacidade. A tripulação de recurso era também reduzidíssima, apenas o piloto e três mecânicos. Após hora e meio de voo desde Beidaihe, o piloto do Trident com Lin Biao, a esposa e o filho a bordo, comprova que não tem gasolina suficiente para chegar à União Soviética. Tenta uma aterragem de emergência numa pradaria da Mongólia. O avião desfaz-se, incendeia-se e morrem os nove tripulantes e passageiros.

Sem Lin Biao, a China vai mudar. Mao Zedong e sobretudo Zhu Enlai, o primeiro-ministro, põem em prática uma política menos radical, recuperam os quadros perseguidos durante a Revolução Cultural, reaparece Deng Xiaoping, concretizam-se as relações com os Estados Unidos da América (Nixon visita a China em 1972), respiram-se no velho império as primeiras brisas dos tempos diferentes.

A estância de Beidaihe, as enseadas, as areias, as águas límpidas do mar, naturalmente insensíveis às maquinações e mil desvairos dos homens, continuam, ano após ano, a abrir-se para receber as gentes da China e dos quatro cantos do mundo.

Razão para eu vir até cá.

Beidaihe, 26 de Julho de 1978

Beidaihe não é só praia, política, sopas e descanso.

Visita ao grande porto de Qinhuangdao e a esta região aqui à volta. Semi-artificial, o porto começou a ser construído em 1900, aproveitando-se algumas reentrâncias da linha de costa. Encavalitado sobre o mar, o porto é feio, tem treze molhes e noves cais para a carga e descarga de mercadorias, enegrecidos e sujos onde navios de pequena e média dimensão carregam carvão originários das minas da Manchúria, aqui a norte.

O Fu Ligang veio connosco, é o tradutor e assessor logístico. Dá uma boa ajuda para entender por onde é que eu ando.

Depois de uns vinte quilómetros de estrada, para o interior, levam-nos para a albufeira da barragem do Shijiang , o rio da Pedra, onde embarcamos numa lancha grande para o passeio fluvial. Falam-nos da construção da enorme represa, 44,6 metros de altura, 50 metros de largura, 336 metros de comprimento, 90 metros de vão até às comportas, a água a correr em abundância, a irrigar os campos e a abastecer as cidades, a jusante. Como acontece com outros rios da China, de caudais desequilibrados entre a estação das chuvas e a estação seca, este rio da Pedra também costuma provocar inundações. Agora é um enorme lago bonito entre montes, repleto de peixes, com a paisagem à volta algo semelhante à das albufeiras das barragens do rio Cávado, no nosso Gerês.

De tarde, viagem curta até à comuna popular Chang Qing (Sempre Verde) que aproveita as águas do rio da Pedra e que fornece a cidade de Qinhuangdao com todo o tipo de hortaliças e legumes. Nesta comuna vivem 170 famílias e dizem-me que antes da Libertação (1949), ou seja, a tomada do poder pelos comunistas, a miséria assolava esta região, faltava comida e roupa, eram incontáveis os mendigos. Hoje a realidade parece ser muito diferente. As pessoas, as crianças bonitas estão bem alimentadas e decentemente vestidas. Houve ida à escola primária, os miúdos a cantaram e dançaram em homenagem a estes obtusos estrangeiros que hoje os foram conhecer. É tempo das colheitas de Verão, há milho, tomate, melancia, sementes de girassol, sorgo um pouco por toda a parte. Dizem-me que têm agora tractores e camionetas próprias, cada pessoa ganha 1,60 yuans por dia e todos beneficiam do que chamam os Dez Gratuitos, ou seja, são grátis a escola, o corte de cabelo, a confecção de vestuário, os legumes, o veterinário, o funeral, o cinema, a casa, o gás e o tratamento médico. Cozinham com gás obtido a partir da fermentação de excrementos animais. Neste ano de 1978, com adubos orgânicos e químicos, esperam produzir 4 milhões de quilos de vegetais de legumes o que dá, com algumas contas complicadas, 15.000 quilos por família. A comuna conta com 720 porcos, número exactamente igual ao total dos habitantes da aldeia. Muitos dos animais criados e engordados na pequena parcela de terra privada pertencem a cada família.

Interessante, o lugar. Gente humilde, com a subsistência garantida, sem um sinal de ostentação ou riqueza.

No dia seguinte, ida a Shanhaiguan 山海关, o lugar onde termina (ou onde começa!) a Grande Muralha da China que aqui entra suavemente no mar após 6.000 quilómetros de espantosa construção, subindo e descendo dez mil montes e montanhas. Nesta primeira Passagem Debaixo do Céu 天下第一关, a Muralha tem 9 metros de altura, 4 de largura e foi levantada em 1381. Dizem-me que foi a primeira relíquia cultural a ser restaurada, quando os comunistas tomaram o poder em 1949.

Tudo claro e autêntico, China, China.

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