Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasExílio e Alteridade Manuel Afonso Costa - 15 Set 2016 Sales Lopes, Fernando, 2014, Geometria & Exercícios em Busca da Perfeição, Macau 2014 Cota: 821.134.3(512.318)-1 Lop A. Estes exercícios podem ir da pura retórica ou de uma busca e de uma demanda, mas visam sempre a perfeição. Aquilo que Fernando Sales Lopes nos oferece tem mais o sentido de uma demanda, de uma procura interior mas também de uma partilha. Na voz de Sales Lopes fala a sua voz própria mas também uma experiência que o ultrapassa. “Aprendi tudo como me ensinaram / (…) Mas não me ensinaram / (Talvez nem o soubessem) / o que sentimos / quando / tanto tempo depois / numa velha igreja em ruínas / se ouve rezar em português / (…)”. A sua voz tanto se apaga diante daquilo que ele sente que mais do que ele o justifica, como faz sentir a sua presença, própria, idiossincrática. Ele pensa, ou pensará, que alguma realidade o justifica, quando eu penso que é o contrário que acontece, é o poeta, e no caso ele, que pode justificar e tudo justifica. E por isso para mim, na maior parte das vezes em que Fernando Sales Lopes utiliza a primeira pessoa do plural, em boa verdade refere-se, mas com pudor, à primeira pessoa do singular. “Somos dos que nunca mais regressámos / desde a longa caminhada das Índias / Perdidos, para sempre, no interior de nós / (…)”. O plural, vagamente majestático, e a ideia de uma pertença não negada limita-se a reforçar o destino próprio. A aventura colectiva serve apenas ou pelo menos essencialmente como caução para si mesmo, ainda que o poeta o não considere eventualmente nos seus pressupostos ideológicos. O nós tem tendência, progressivamente, a não representar senão o eu, mesmo que, por pudor insisto, se esconda por detrás de um plural. “Se querem saber de nós, procurem // Procurem em todas as terras / onde o mar se espreguiça em largos areais / Procurem no sonho, onde não penetram”. É claro que os poemas possuem uma referencialidade histórica e cultural, mas apenas enquanto pretexto para que se possa falar de si próprio sem constrangimento e por essa via este nós, mesmo que também se deixe ler assim, e essa ambiguidade é em si mesmo um recurso estilístico entre os demais, assume o desígnio de um eu desdobrado. E ao longo do livro sê-lo-á cada vez mais. Até não ser senão isso. É como se dentro do próprio texto, da sua narrativa implícita, assistíssemos à metamorfose do poeta cidadão deste mundo no demiurgo de um mundo outro e novo. B. Neste livro de Sales Lopes assistimos à narrativa dessa metamorfose, com avanços e recuos, como não podia deixar de ser. Os partos são difíceis: 1. A expressão do anseio “O branco que só este sol me dá / Cedo. Muito cedo / Que o cinzento de sempre logo fará desaparecer // Deixem-me mergulhar nesta luz / Estou farto de grades”. 2. E depois a certeza “Aquilo que eu vejo é só meu. Só eu o vejo assim” 3. Mas antes do Mundo, antes do seu nascimento há a angústia do nada “Olho a profundidade / um imenso vazio / a totalidade do nada” 4. E há momentos cruciais O momento e cito do “sono dos deuses / no infinito dos tempos” em que o demiurgo está “suspenso no vazio”. Ou o momento da dor “Doloroso atingir o nada / viajando entre o tudo // pesa-me o caminho” ou da perda “é com a ausência que vivo / cresce a distancia das coisas / tudo é já intocável” Pois é necessário que o criador se desfaça de um mundo para poder ganhar outro. C. Ao mesmo tempo que o texto dá conta do nascimento de um mundo mostra-nos a trama que o engendra. O que alimenta ideologicamente o mundo novo é a problemática da relação. A tensão é, ao longo do livro, permanente entre o Eu Poético e o Outro e se algumas vezes esse Outro aparece configurado com as roupagens do Mesmo, em muitos momentos o Outro é expressão de pura alteridade. O elemento mais sedutor na poética de Fernando Sales Lopes, reside mesmo no facto de que o Outro é compósito e nele não se distingue, por vezes, o que é da ordem da mesmidade ou da alteridade. Como se para lá do Eu ou seja da sua ipseidade, não fizesse muito sentido a separação entre os dois pronomes pessoais que em geral se opõem: o Nós e o Eles. Todos são da ordem do Nós e todos são ao mesmo tempo Outro relativamente ao Eu que é Nós. E em certos momentos o próprio Eu se dilui no caudal caótico da indiferenciação. “Deambulo por estas ruas sem esquadria / Veias aonde o sangue roça as margens / (…) / Confundo-me / Tudo e todos vivem em mim e eu sou já um deles”. Na maior parte das vezes a procura do outro é orientada por Eros. Como neste intenso poema: “Queria navegar-te / rasgando canais / pela terra virgem // Desvendar-te os mistérios / numa orquídea lilás / explodindo em Budas / de ouro… // E depois… amar-te // Deslizando pelo veludo / da tua pele branca / e macia. // Na volúpia dos cheiros / sobre um imenso / pano laranja // Açafrão benzido / que te cobrisse / na loucura do êxtase // Misturados nas águas / que são o teu sangue / E na terra que a consome / até ao mar // Ao grande mar / dos nosso suados corpos” Mas eros, pode ser amor ou amizade. A grande aventura da alteridade é a assunção de que o que promove a diferença é o abraço… O outro transcende-me como facto do mundo, mas fá-lo de uma forma dinâmica. Ele provoca uma mutação na minha intencionalidade. A consciência recebe o outro como um facto insólito. A minha intencionalidade só pode ser imediatamente ética quando é estimulada pelo outro. Porque o outro é, apesar da sua inalienável alteridade, a erupção, fenomenologicamente outra, de mim mesmo. O outro sou eu separado da minha autoconsciência. O outro sou eu sem o abrigo da minha identidade. Eu torno-me abrigo para o meu semelhante porque ele coabita o meu mistério, a minha condição, porque ele, sou eu visto a partir de mim próprio, porque todos somos o outro. A nossa condição é sermos sempre o outro. Se nos desfizermos do outro é de nós mesmo que nos desfazemos. “Eis-me de volta / dos tempos // do cravo / da canela / do gengibre / da pimenta // Ficou este abraço / que nos torna diferentes…” Pois a alteridade deve persistir sempre. E porque um dos mais poderosos referentes da diferença é a cor, Fernando Sales Lopes traz a cor à sua intenção fenomenológica e poética e o que nos diz é que as cores não comportam em si uma essência, a essência permanece, aquilo que é substantivo e axial sofre a mutação das cores para ficar inalterável (inalterado), ou seja não reduzido ao mesmo. “Negro / Negro como os malabares / que te adoram // Negro / pelos fumos / dos incensos e óleos // As setas do teu martírio / escondem-se / sob colares floridos / grinaldas de abolim / com que te pagam / o milagre do amanhã // Levámos-te santo de Roma / transformaram-te em ídolo // Ganesh / duma outra fé”. É a transcendência intrínseca do mundo que fundamenta a intencionalidade fenomenológica e é essa intencionalidade que fundamenta o papel dinâmico a priori da consciência. Por isso a consciência é fenomenológica mas também transcendental, pois que ela está desde sempre comprometida com o mundo que visa. Não há qualquer coisa como o mundo e a consciência, separados à maneira cartesiana. O mundo é mundo para a consciência e a consciência é consciência de e para o mundo. É neste contexto que o outro aparece como figuração / encenação da transcendência. Eu viso-o porque sou visado. Eu respondo a um apelo, a uma provocação. Este livro de Sales Lopes está cheio de momentos em que esta dramaturgia é consagrada. Mas eros predomina como intriga e tensão, uma vez que a inalienável relação com o Outro não é ontologicamente neutra. A relação com o outro não é Logos. A alteridade é Eros. A alteridade é talvez ainda mais. A alteridade é a sabedoria de Eros. Ora na génese desta sabedoria do amor está o desejo. “Entreabertas, as janelas / rasgam as paredes de açafrão // Para lá das conchas / aqueles imensos olhos / negros, sedutores, / misteriosos / fixos e indiferentes // Por eles viajo / numa paixão sem tempo // Eu sabia que estavas à minha espera”. (P. 35) Repare-se como aqui, neste poema que citei, aparece clara a ideia nuclear de que a alteridade é desejo e eros ou seja como eu disse acima, a ideia de que “Eu viso porque sou visado”. A ideia afinal de que eu respondo a um apelo, a uma provocação”. E essa ideia aparece neste caso reforçada por uma espécie de antecipação estruturante. De alguma maneira o mundo do Outro não é uma descoberta fortuita. O mundo do Outro é a descoberta de uma confirmação. Ora, só há confirmação e ao mesmo tempo descoberta se houver ambivalência. Ou seja se eu procurar o Outro com a certeza de que ele me espera. Ora, o que determina que eu saiba que ele me espera é o desejo de que assim seja. E reversivamente é essa convicção e certeza que reforça a determinação da minha procura e que desde logo, a montante a justifica. Ora só há uma possibilidade para esta confluência, para que eu possua a certeza de ir encontrar aquilo que eu procuro e que ressalve-se desde já é sempre da ordem da aventura; essa possibilidade enraíza no facto de que como eu disse acima: “o outro é, apesar da sua inalienável alteridade, a erupção, fenomenologicamente outra, de mim mesmo. O outro sou eu separado da minha autoconsciência. O outro sou eu sem o abrigo da minha identidade”. Repare-se como de uma assentada confluem para a compreensão todos os elementos da alteridade, tal como aqui a concebo e que o texto poético de Sales Lopes confirma e cauciona: — A coincidência entre o Mesmo e o Outro e —- ao mesmo tempo a sua inalienável separação. e sobretudo — o sentimento de aventura e perigo que o outro encerra. Perigo que aparece apenas como aventura, desejo e epopeia sem regresso, portanto às avessas de todas as odisseias. Em Sales Lopes, no seu livro, prevalece um inequívoco sentido da errância, de uma diáspora sem fim. No livro nós encontramos todas estas referências de forma explícita: — “Quero navegar o universo / talvez por dentro de mim / e que fique escrita em verso / a grande viagem sem fim”. — “Somos o vinho da loucura. / O herói e o vencido, da grande aventura / que é estarmos em todo o lado diferentes / mas nós!” — “Deambulo por estas ruas sem esquadria / Veias aonde o sangue roça as margens / Tau-fu, tendas, t’chá, gente que me apetece abraçar / Confundo-me / Tudo e todos vivem em mim e eu sou já um deles”. — Somos dos que nunca mais regressámos / desde a longa caminhada das Índias / Perdidos, para sempre, no interior de nós / (…). Sublinho sem ambiguidades possíveis, este último verso “Perdidos, para sempre, no interior de nós” O Outro é uma aventura sem fim. O outro está sempre aí, ganho e perdido, perdido mas procurado e ganho por que encontrado e logo por isso perdido. O Outro está e estará sempre dentro de mim. Então por que o procuro? Justamente porque é a mim que eu procuro. Procuro o Outro em mim, procuro-me a mim na diáspora essencial que me coloca diante do outro. Sempre em movimento, sempre em travessia. Não há paragem nem regresso. Mas se procuro o outro dentro de mim sei bem que não acabarei por encontrá-lo, mas nesta procura, nesta demanda corro risco de me perder eu próprio. Simplesmente à boa maneira levinasiana a alienação que aqui se esboça, o esboroamento da minha autarcia identitária é a grande chance no quadro justificativo do meu processo salvífico. O Outro é um desafio permanente e eterno para o desejo. E, volto a repetir, a expressão desse desejo é e será sempre eros, mas em boa verdade só o desejo de eros, mais do que eros propriamente, exprime toda a tensão ontológica da relação com o outro. O desejo de uma casa e o seu inevitável abandono, a procura de um abrigo e a urgência da demanda, da aventura e do perigo. E ocorre-me aqui um poema de Pessoa … (Mensagem, III Parte, O Encoberto, Os Símbolos, Quinto Império). Excelente jogo de oxímoros e que começa assim: “Triste de quem fica em casa / Contente com o seu lar”. D. Mas porque mais importante do que outro, é o desejo, como já disse, aproximo-me do fim com este notável poema, que o é enquanto poética mas também enquanto ideologia: “Imagino-te / Sobre lençóis de seda “ numa explosão de vida // Nua, nessa etérea cama de ópio / do teu sorriso // Já vejo os crisântemos / abrindo em explosão de desejo // E o véu transparente / a descobrir-te // Sinto a pura sede do teu corpo // (…) // Alguém te pega no braço / e com um sereno sorriso / olhas-me numa despedida / sem regresso // (…) // Tu ficas, vestal branca, dentro de mim” Todo o poema é sobre o desejo do Outro e a sua impossível realização.