VozesExcepção sem regras Fernando Eloy - 20 Jul 2016 [dropcap style=’circle’]P[/dropcap]oucas são as coisas sobre as quais tenho certezas. Os dedos de uma mão chegam, e sobram, para as contar mas, de entre essas poucas, a consciência de que tudo muda em permanência é uma delas. Estando em Macau, então, essa noção da mudança é ainda mais notória. Muito tem mudado e uma das transformações mais evidentes é o facto de os portugueses já não serem bem vindos a Macau por muito que o Governo tente dizer o contrário. Mas está no seu direito e, contra isso, nada! Macau continua a ser terra china mas já não sob administração portuguesa – como dizia o estatuto orgânico do território – pois assim era e não colónia como alguns erroneamente pensam ou querem fazer pensar. Ainda esta semana, dizia à Rádio Macau a presidente da Casa de Portugal, Amélia António, que “há menos portugueses a pedirem residência em Macau porque quem procura trabalhadores desiste de esperar meses pela aprovação dos processos” explicando ainda que “a Casa de Portugal, tem tido dificuldade em contratar formadores portugueses” e que muitos portugueses “não estão para vir para o outro lado do mundo para uma situação muito periclitante”. A isto chama-se “lida àpapelada”, uma forma sub-reptícia de lidar com as questões, uma fuga para o lado, uma cernelha burocrática para ver se os bichos se cansam e, pelos vistos, bem sucedida. Mas não é apenas assim que os poderes locais afastam os portugueses de Macau. “Àpapelada” afastam os que tentam vir, os que já cá estão são afastados com a mudança brusca do modo de vida. Leia-se proibições em barda, interpretações estritas das leis, intolerância administrativa, eliminação de tudo o que é lazer – como a ideia peregrina de tratar as piscinas de recreio como instalações desportivas – poluição descontrolada, destruição do património mediterrânico, enfim, um ataque frontal ao Macau descontraído, ao famoso “laid-back”, característica tão marcante da cidade até pouco depois de 99. A tonalidade que tantos atraiu pela sua forma única de viver, por ser um enclave mediterrânico na Ásia, motivo de romances, telas, imaginários e vidas está praticamente extinta. A realidade é que enquanto os portugueses conseguiram, ao longo de séculos, permitir a vida chinesa e a manutenção intacta das suas tradições e formas de estar, a administração chinesa, em meia dúzia de anos, conseguiu arruinar a nossa. Mas, como disse, são opções e quem não está bem muda-se, precisamente o que vai acontecendo. Todavia, grande parte da culpa é nossa. Pelas melhores razões, mas é nossa. Como português orgulho-me da decisão que levou à entrega da cidadania nacional aos residentes de Macau que assim a pretenderam aquando da passagem para a China. Ficou-nos bem, mais ninguém o fez. Mas, como português, tenho de reconhecer agora que, como as coisas mudam, esse estatuto de nacionalidade-de- mão-beijada, para quem não fala e lê português ou tem qualquer contacto evidente com a nossa cultura, já não faz sentido e tem de ser revisto. Continuar a produzir cidadãos sem qualquer ligação à nossa cultura, conforme a lei portuguesa obriga, é uma aberração e um tiro no pé. O estatuto de excepção deve de ser revisto e com urgência. Para o bem de todos e, no limite, para o bem de Macau e da própria China. Explicando. A imprensa portuguesa de Macau está em crise. O mercado publicitário é diminuto e isso deve-se à falta de leitores e à pouca capacidade de penetração que tem na população de Macau. Mas a imprensa portuguesa de Macau faz falta ao território porque, como o seu estatuto lhe impõe, actua servindo de tabelião das liberdades e garantias, verificando factos, denunciando injustiças, dando voz a quem dela precisa e segue rigorosos códigos deontológicos e de conduta como cabe a uma imprensa livre, saudável e responsável. Do outro lado, todos sabemos que a imprensa chinesa de Macau não só não faz nada disso como se rege por padrões de conduta muito mais difusos. Sem esquecer o sistema legal, que não se compadece com alunos que apenas decoram artigos mas precisa que os mesmos percebam a cultura que origina a jurisprudência. Pelas mesmas razões, a venda de livros em português também não é famosa na cidade e assim perde Macau a possibilidade ter uma população com sentido crítico, de mente aberta e universalista que, de facto, faz a ponte com os países de língua portuguesa e um sistema jurídico humanista; Portugal perde a possibilidade de ter em Macau um ponto cultural avançado de contacto com a China e o resto do Oriente e a China perde a ideia da plataforma de contacto com o mundo lusófono pois, num futuro próximo, esta transformar-se-á numa quimera, num pastiche. Segundo a lei da nacionalidade portuguesa (n.º 37/81) no seu artigo 1º (nacionalidade originária), “os indivíduos nascidos no estrangeiro com, pelo menos, um ascendente de nacionalidade portuguesa do 2.º grau na linha recta (…) se declararem que querem ser portugueses e possuírem laços de efectiva ligação à comunidade nacional (…) podem inscrever o nascimento no registo civil português”. “Laços de efectiva ligação à comunidade nacional”? Sem se falar ou entender o idioma, como é feita a ligação? Via Cristiano Ronaldo?… No ponto três do mesmo artigo lê-se ainda que “a verificação da existência de laços de efectiva ligação à comunidade nacional (…) implica o reconhecimento, pelo Governo, da relevância de tais laços, nomeadamente pelo conhecimento suficiente da língua portuguesa e pela existência de contactos regulares com o território português”. Admito que alguns tenham contactos com o território nacional mas não o conhecimento suficiente da língua. Isso tem de acabar, não apenas pelas razões expostas mas também para não alimentar a ideia de portugueses de primeira e de segunda que todos sabemos existir, e com alguma razão. A revisão urgente deste estatuto de excepção, parece-me, por isso, crucial pois em nada beneficia Portugal, nem Macau, nem a China, nem os portugueses e outros lusófonos que aqui vivem, nem as empresas e associações que aqui montam. Por isso, sugiro que num futuro próximo e em prazos justos a definir, a renovação dos documentos de identificação portugueses pressuponha o “conhecimento suficiente da língua”, dando cumprimento à lei portuguesa. Naturalmente, terão de ser salvaguardadas excepções como, por exemplo, para pessoas acima de uma certa idade, ou com incapacidade manifesta de aprendizagem. Obrigará a um esforço do IPOR e de várias outras entidades mas não há impossíveis e tem de ser feito, para o bem de Portugal, de Macau e da própria China se, de facto, pretende que Macau sirva como ligação ao mundo lusófono. Não podemos é continuar a distribuir passaportes como quem atira confetti numa festa de carnaval, pois aos países, tal como às pessoas, aplica-se a velha máxima de que “quem muito se baixa, muito o cu se lhe vê”. MÚSICA DA SEMANA “After All” (David Bowie, 1970) “We’re painting our faces and dressing in thoughts from the skies, From paradise But they think that we’re holding a secretive ball. Won’t someone invite them They’re just taller children, that’s all, after all”