Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasA vida é um palco Manuel Afonso Costa - 14 Jul 2016 Tchekov, Anton, Contos e Narrativas, Estúdios Cor, Lisboa 1972 Descritores: Literatura Russa, 402, [3] p.:20 cm, Tradução Lopes Azevedo Cota: C-11-4-235 [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]nton Pavlovitch Tchechov, nasceu no dia 29 de janeiro de 1860 e faleceu na Floresta Negra em Badenweiler, no dia 15 de julho de 1904. Cursou e exerceu medicina toda a vida, considerando que a ciência médica era a sua mulher legítima enquanto que a literatura, a que se dedicou também toda a vida, era uma espécie de amante. Abençoada amante, apetece dizer. Dentro da literatura evidenciou-se a sua arte de dramaturgo e contista, genial em ambos os registos. Há duas notas prévias que se devem considerar quando se pretende tentar escrever sobre Tchekhov. Uma é o facto de que a sua técnica do uso do fluxo de consciência é absolutamente original e precursora e aparece na obra com uma naturalidade, única na história da literatura, que a torna imperceptível. A outra é a deliberada ausência de juízos morais o que produz nos textos a aparência de uma espécie de inércia, do ponto de vista axiológico, embora jamais a tenham. Como é que ele o consegue!? Aí residirá o maior mistério da genialidade da sua forma de expressão. Tchekhov é considerado um dos maiores contistas de todos os tempos mas, para mim, o seu teatro não lhe fica a dever nada. Do seu teatro eu destaco além da Gaivota: O Tio Vânia, As Três Irmãs e O Cerejal. Alguém falou de um teatro de humores e de uma vida submersa no texto; nada mais certeiro. Tolstoi detestava o teatro de Tchekhov, mas detestava de igual modo Shakespeare, ora como sabemos, no melhor pano cai a nódoa. Possuo o sentimento de que não sou capaz de escrever sobre Tchekhov. Seguramente saberei e serei capaz de falar de Tchekhov e de escrever sobre ele na generalidade da sua vida e obra, daquilo que se tornou trivial acerca dele. E ainda lhe poderei acrescentar muito do que é possível ler sobre ele e que é vasto, e às vezes muito bom, como os textos iluminados de Nabukhov, por exemplo, mas escrever sobre ele de um modo absolutamente pessoal, tenho sérias dúvidas. E não é porque não o compreenda, ou porque não goste, ou outro tipo de sentimentos assim. É uma espécie de bloqueio que resulta do facto de que o compreendo tão profundamente, como nenhum outro escritor, e por isso não sou capaz e portanto não sei. A impotência é uma forma de sabedoria da não sabedoria. A parte da obra de Tchekhov que é responsável por esse bloqueio, por essa impotência, é o teatro, que é também a parte da sua obra onde o indizível se apresenta mais nítido. Um indizível nítido parece um paradoxo, mas não é, atrevo-me a dizer. O teatro de Anton Tchekhov que já li abundantemente e que também já vi no palco e no cinema interpela-me com tal intensidade que fico reduzido a uma pura emoção, mas a uma emoção vencida e jamais triunfante. Uma emoção que promove a desistência e o silêncio. Eu sei o que ele quer exprimir, nem tenho dúvidas sobre isso, mas não sou capaz de o definir pacificamente. Em última análise porque o que ele quer dizer e exprime, à sua maneira, é justamente o que a vida não pode exprimir senão assim: um arrepio sem palavras, um cenário omnisciente sem legendas. A minha paralisação verbal é quase da ordem do respeito cerimonial. Faço, pode-se dizer, um silêncio expressivo, um silêncio que diz tudo. A primeira peça que li dele foi a Gaivota e depois disso já vi a Gaivota, tanto no teatro como no cinema e a sensação foi sempre a mesma, aquilo é a vida, não a vida concretizada, realizada e também verbalizada, mas a vida do desejo não realizado, do sonho apenas entrevisto, de um sentimento muito vago do falhanço, da perda, do irreparável. Parece que Tchekhov deixou de se dedicar ao teatro depois da péssima reacção à apresentação de Gaivota. Eu compreendo a má reacção, pelos mesmos motivos que enformam este meu texto. A Gaivota é provavelmente o texto do escritor em que tudo o que tenho vindo a dizer e espero dizer ainda até ao fim deste breve excurso, se confirma de modo sublime. A Gaivota é todo o mistério do génio de Tchekhov condensado, a sensação poética e existencial do ‘por viver’. Este ‘por viver’ não remete para um futuro ou um passado, é sempre no presente que a falha está presente e presentifica a vida com esse sentimento de falhanço antecipado. Essa é a sensação de todas as outras peças também, verdadeiras epifanias do que é evanescente, volátil, que a vida anuncia e nos rouba, e isto permanentemente ao longo dela, … não é sempre o mesmo o que se adia, o que fica suspenso, o que se perde, ou mesmo só o anúncio reiterado dessa perda. Não é sempre o mesmo empiricamente falando, mas é de facto sempre o mesmo, enquanto metamorfose ontológica da incompletude e da carência. É sempre o mesmo, no fim de contas. E é sempre a mesma a emoção não dramática dessas perdas sucessivas. O dramático reside na ausência de dramatismo, nas peças de Anton Tchekhov, e isso consubstancia uma suavidade sofrida, uma tristeza não convulsiva, … E é esta ausência de pathos que me intriga e me perturba e me paralisa. Eu evidencio a Gaivota em detrimento do Tio Vânia, por exemplo, apenas porque a questão da arte está na Gaivota de forma mais explícita. Pressente-se em toda a obra de Tchekhov uma certeza: só a arte poderá, se é que pode, superar as aporias existenciais. A vida é um novelo embaraçado que a vida não desembaraça. A arte vem em seu auxílio, procurando superar as antinomias irresolúveis, porém percebe-se que a fronteira entre a arte e a vida não é nítida e que a arte, ela própria, se embrulha em outras antinomias tão irresolúveis quanto aquelas. O novelo existencial prevalece agora num plano sublimado, onde as metalinguagens não logram o efeito de distanciamento procurado e esperado. É sempre a vida que cobre o campo de todas as referencialidades … Contudo esse Tio Vânia que usei como exemplo para contrapor A Gaivota, é provavelmente a peça onde o que referi a propósito do sentimento de perda é mais expressivo e melhor conseguido. Os anseios fazem corpo com as frustrações, as tentativas de regeneração, condenadas ao malogro, exprimem-se em ideais de fuga e abandono e por fim o desgaste acaba por conduzir ao triunfo da rotina, que exprime o sentimento de derrota, de um epos dos vencidos, pois o que se perde jamais se resgata e apesar das alterações, que são sempre superficiais, prevalece o rumor profundo do que não muda e se torna asfixiante. Sem falsa modéstia talvez tenha acabado por escrever sobre Tchekhov aquilo que de facto será o essencial da sua obra literária justamente na sua essência, uma essência não substancial, despida de ênfase ou retórica, aparentemente banal e prosaica mas de uma intensidade dramática avassaladora e tanto mais estranha quando e porque é plenamente conseguida com tão escassos recursos. Aí reside o génio absoluto do dramaturgo e contista russo. No fim de contas acaba por se tratar de uma ironia extrema, num autor que cultivou a ironia como provavelmente mais ninguém. Manuel Afonso Costa