Exílio e Desgraça. A Ruptura Trágica

Coetzee, J.M., Disgrace, Penguin Books, New York, 2000.
Descritores: Literatura Sul Africana, Ficção, O Politicamente Correcto, 220 p., ISBN: 0-14-029640-9.
Cota: 821.111(68) -31 Coe

 

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]escritor sul-africano John Maxwell Coetzee nasceu no dia 9 de fevereiro de 1940 na cidade do Cabo numa família de origem alemã e inglesa e recebeu o prémio Nobel de Literatura em 2003, sendo o quarto escritor africano a receber esta honraria e o segundo no seu país depois de Nadine Gordimer, em 1991. Coetzee estudou Língua Inglesa e Matemática e veio a doutorar-se em linguística das línguas germânicas na Universidade do Texas, em Austin, com uma tese sobre os primeiros trabalhos de Samuel Beckett no ano de 1968. Actualmente depois de ter leccionado na Universidade em Búfalo no Estado de Nova Iorque, fixou-se na Austrália ensinando na Universidade de Adelaide. Era filho de um advogado e de uma professora primária e cresceu num meio afastado da vida urbana, marcado por alguma rudeza, no seio de uma família disfuncional, como são afinal quase todas as famílias, e é disso que nos dá conta no livro, Infância. As suas obras mais importantes são porém no domínio da literatura de ficção e delas eu destacaria: À Espera dos Bárbaros, Vida e Tempo de Michael K .” (Booker Prize de 1983), Desgraça” (Booker Prize de 1999), Homem Lento, Diário de um Ano Ruim e Verão.

Disgrace, em língua portuguesa desgraça, não me refiro ao título do livro, mas ao conceito, subentende uma perda da Graça. A Graça não é uma palavra ambígua. Procede do termo latino gratia, gratus, que como se sabe nobilita aquele que a possui, como se fosse um dom. Em todos os casos os conceitos ganham a dimensão semântica do que lhes é simétrico e sendo assim a graça é qualquer coisa que se recebe e ao mesmo tempo a gratidão que se exprime, como no caso do nome recebido pelo baptismo. A Graça é o dom que se recebe mas que se exprime como se fosse nativo. Em qualquer dos casos não tem preço nem valor de troca, é inalienável e grátis. É grátis e gratificante. O conceito de Graça anda muitas vezes na perspectiva de uma compreensão da condição feliz ligado ao conceito de Ventura, pelo que aquele que a perde passa a ser um desgraçado, cúmulo de desventura e infelicidade.
A desgraça exprime portanto uma situação radical e não é um conceito ligeiro numa fenomenologia da condição humana. É provavelmente o conceito mais radical para exprimir uma perda irreparável e até definitiva, pois o Estado de Graça é da ordem da estruturalidade do Ser. Coetzee mediu bem as consequências da sua escolha. A África do Sul há muitos anos que não vivia em estado de graça, provavelmente nunca terá vivido, mas só agora no período post apartheid soltou os demónios que a habitavam e mostrou a sua imensa e constitutiva Desgraça. Esse é o momento em que ontologia e história se reencontram nos indivíduos sem os mecanismos ideológicos e repressivos de amortecimento, sem os alibis justificativos. Disgrace é portanto mais do que uma narrativa com agentes sociais determinados, é o relato de uma epopeia numa situação post lapsária acompanhado do relato das várias formas de sobrevivência perante a desgraça ou a queda. Como é que indivíduos desgraçados lutam ainda pela dignidade numa sociedade doente, decadente, desgraçada ela também. Talvez que seja essa a intriga — no sentido de intrigante —, do romance. O romance ocorre no ambiente pós-apartheid, mas o que o justifica é ainda a presença tutelar do mal que o apartheid simbolizava.
Este é considerado o melhor romance de J. M. Coetzee. O livro conta a história de David Lurie, um professor de literatura que não sabe como conciliar a sua formação, o seu desejo e as suas frustrações com as normas politicamente correctas e portanto hipócritas da universidade onde lecciona. Disgrace navega portanto no mar turbulento das relações sociais, de género e de raça no ambiente agora clarificado da sociedade da República da África do Sul.
Os elementos mais presentes na estrutura de Disgrace são a inversão de forças ocorrendo em várias situações, cujos resultados são as muitas perdas e o deslocamento da identidade dos brancos em oposição ao fortalecimento dos negros; a associação da figura do protagonista com imagens demoníacas; e o reconhecimento do fim do apartheid e seus resultados como consequência da circularidade da história, levando a um pessimismo revelado na análise que o autor faz da sociedade branca sul-africana e do futuro que a espera. 28416P10T1
Percebe-se que os elementos possibilitadores do mal presentes em outros do seus romances se reposicionam, transmutam-se, vestem outros discursos, mas não desaparecem. Constrói-se uma nova abordagem, em que há a reversão da história construída pelos mais fortes, cujo resultado havia sido o apagamento ou a distorção da história dos mais fracos. Desgraça leva o leitor a perceber que não importando de que lado se está, a vitória de uns significa a derrota para outros. Isso implica não só a reescritura da história, mas a redefinição dos discursos permitidos e daqueles proibidos. Coetzee, no romance em questão, reconhece a culpa histórica dos seus antepassados, mas retrata uma sociedade em que as inversões se deram em todas as esferas, inclusive na agência da violência, o que acarretou profundas transformações na subjectividade dos sujeitos envolvidos nesse processo.
Observa-se no romance de J. M. Coetzee a figuração de uma tragicidade possível no mundo contemporâneo, porém com incidência distinta dos exemplos gregos (sem, contudo, perder pontos de contacto). Quando se fala em trágico, aqui, remete-se ao termo conforme a acepção moderna, formulada no romantismo alemão, que em linhas gerais se refere à afirmação da individualidade ante o mundo. Tal afirmação resulta quase sempre no aniquilamento do indivíduo. Em Desgraça, o cenário desse aniquilamento (o evento trágico) é a África do Sul pós-apartheid.
Ao ler este livro não pude evitar o sentimento de que algures existiria uma certa semelhança com a Mancha Humana de Philipe Roth e contudo não existe nenhuma proximidade de tempo e lugar, quer dizer relativamente ao tempo global, sim, é o mesmo, mas o tempo global é uma abstracção, é sempre de espaço tempo que se trata. E, nesse plano as diferenças são enormes. Ainda assim o destino das personagens principais dos dois romances, ambos curiosamente universitários e ambos apanhados na ratoeira da nova ideologia do “politicamente correcto”, é parecido.
Gostaria ainda de deixar aqui uma pista sobre o meu próprio texto que possa ajudar o leitor a descodificar melhor o breve excurso sobre a questão da ‘Graça’. Para lá da inevitável relação com a literatura teológica, sobretudo patrística e com Santo Agostinho em particular, tive muito em conta um texto de Giorgio Agamben, do livro Profanações, intitulado Genius. Existe na relação de cada pessoa com o seu Génio uma gravidade e um cuidado que em mim conecta com o sentimento de perigo (trágico) associado à eventual perda da Graça. Vivemos, provavelmente, nesta fronteira, tão precária, por vezes de modo algo leviano e porém o essencial da nossa vida estará eventualmente aí, nessa relação misteriosa com uma forma de transcendência que nos é constitutiva. “Os latinos denominavam Genius o deus ao qual cada homem se encontra confiado no momento do nascimento. A etimologia é transparente e permanece ainda visível na proximidade de ‘Génio’ e do verbo engendrar” (Agamben). O tema é muito exaltante e através dele podemos fazer esse itinerário que vai ao encontro do conceito de ‘Graça’, passando naturalmente pela célebre frase de Heráclito: “O carácter de um homem é o seu Daimon” (ethos anthropó daimon). Heidegger viria na Carta Sobre o Humanismo a explorar esta frase num sentido mais próximo da ideia de Graça cristã ao dizer que o “homem mora enquanto homem na proximidade de Deus”. Isso resulta do facto de que Heidegger ao procurar encontrar uma fundamentação ontológica para a ética, isto é para o ethos, conferindo-lhe a dignidade de um lugar, melhor de uma morada, isto é, de uma relação de vizinhança, forçou talvez o sentido heraclitiano da frase, mas seguramente não muito tendo em conta que o sábio de Éfeso gostava de se exprimir na proximidade da linguagem dos Mistérios e ele mesmo atribuía ao carácter o sentido da morada mais íntima do homem. O estado de graça confere essa vizinhança e essa morada, radicalmente, a sua perda adquire portanto a conotação de uma expulsão da morada e portanto de um exílio, etc. etc. Ora uma das palavras que na cultura grega exprimia e exprime ainda a ideia de felicidade, é Eudaimonia, que justamente exprime a ideia de um bom Daimon. Assim se percebe portanto a relação que pretendemos estabelecer entre a transcendência e o mundo, entre a ontologia e a ética. Os romances que citei exploram ambos esta problemática. Quando alguma coisa se rompe e não se devia ter rompido, quando um elo se quebra e uma vizinhança vital se deteriora, algo de trágico pode ocorrer…
Em Disgrace e na Mancha Humana é de exilados que se trata. Agora, porém, trata-se de um exílio sem a ambivalência construtiva que eu geralmente lhe atribuo, mas de uma queda, de uma perda da vizinhança com o Génio ou o Daimon. O ser desconecta da Graça… e portanto o que pode sobrevir é da ordem da Desgraça.

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