Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? – A viúva

* por José Drummond

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]ntes de começarmos, e enquanto ainda tens consciência, quero fazer-te uma proposta. Vai ser necessário que tenhas ambos os cotovelos apoiados naquela mesa baixa. Ali perto do braseiro de carvão quente. Anda, vamos até lá. Isso. Agora, estica os braços, assim, ao longo da mesa. Isso. Deste modo posso prender-te as mãos nestas grilhetas. Perfeito. 
Reparei como prestaste atenção a esta sala. Assim deste modo terás uma nova perspectiva. Sabes que também eu ouvi o canto de um pássaro. E o bater das suas asas. Oiço tudo. Tanto oiço o sangue a correr-te nas veias como quase sou capaz de ouvir os teus pensamentos. E até de os antecipar. Não acreditas? E se eu te disser que até oiço o som das garrafas que estão a ser descarregadas dos camiões, em frente ao supermercado na esquina. Mas mais importante que isso, oiço, em algum lugar, lá fora, na colina, o canto de cisne, murmúrio atormentado de uma mulher ainda assustada. Oiço o seu ventre aberto a bombear sangue para fora. Oiço o persistente assobio do assassino. Está à entrada ou à saída do túnel. Digo isto pelo ligeiro eco. Oiço o grito fino de um bebé. Oiço tudo. Mas sei que nada pode ser feito para salvá-lo. E nada pode ser feito para salvar a mãe. Já é demasiado tarde. 

Eu sei que neste momento pensas que eu sou um monstro do mesmo calibre como o deste estripador. Eu sei que neste momento estás pronto para desatar a chorar, implorar perdão, tentar suprimir aquilo que julgas ser raiva em mim. Devo voltar a dizer-te que não tenho qualquer ressentimento em relação a ti ou ao que fizeste. A tua mulher nunca foi realmente importante para mim e aquilo que aconteceu ao meu filho foi apenas resultado da sua fraqueza. Tu estás aqui porque alguém assim o quer. Mas talvez exista uma saída. Uma solução que não envolva eu ter que te fazer aquilo para a qual fui contratada. Tudo depende de ti realmente. 
Lembras-te que eu te disse que tenho uma filha. Pois bem ela é tudo o que tenho na vida. É realmente a única coisa que me preocupa neste momento. Por isso presta atenção. Presta muita atenção. A minha filha não sabe que eu sei que está grávida. Não existe problema nenhum para mim que ela esteja grávida. O problema é que o pai é um homem que já tem filhos de outra mulher. O problema é que este verme nunca irá proteger a minha filha. E ela precisa de protecção. Agora mais do que nunca. Presta atenção. Presta muita atenção. Os segredos só se contam uma vez e depois devem ficar enterrados. Tenta perceber que a tua capacidade de manter este segredo pode resultar num pacto entre nós. Um pacto que se cumprires a tua parte te pode devolver a liberdade. Presta atenção. Presta muita atenção. Como sabes existe um assassino à solta a estripar mulheres. A escolha dele recai em mulheres com pouco mais que trinta anos. Que idade tinha a tua mulher quando… Estás a tremer? Ahhh! Não sabes! Interessante. Pensei que isso pudesse ter sido a razão maior para fazeres aquilo que fizeste. Estou deliciada com a tua inocência. Sim. É isso mesmo que estás agora a pensar. A tua mulher estava grávida. E o pai do bebé era o meu filho. Dói, não é? Somos sempre os últimos a saber aquilo que se passa na nossa vida.
Ela não ousou a injúria. Teve que fazer com que a gravidez ficasse em segredo. Ela não te ia deixar e tu irias ter um filho que não era teu. Quando ela morreu o meu filho ameaçou matar-se. Consegui que ele se acalmasse. Mas infelizmente um dia o segredo veio ao de cima quando a melhor amiga dela lhe contou tudo. Quando ele me encontrou os seus olhos tinham mudado para sempre. Aqueles olhos, que antes tinham lágrimas a brotar nos cantos, não eram olhos. Estavam vazios. Desprovidos de sentimento. “Ela estava grávida, não é? O bebé era meu e também está morto! Odeio-te! Não consigo respirar. Deixa-me ir.” Nunca mais o vi.

A pouco e pouco tudo fará sentido. Eu não fui sempre assim. Vou agora contar-te outra coisa. Há  muitos anos atrás existiu uma guerra entre as tríades. Ainda Macau era governado por portugueses e era um “território” – a palavra que usavam para disfarçar atitudes coloniais. Muito antes da Taipa ser um asilo psiquiátrico. Foi um dos meus primeiros trabalhos. A minha missão não era simples. Tinha que me infiltrar como se fosse uma jogadora de Xangai, conquistar o líder de determinado subgrupo, extrair informação e acabar com ele sem que ninguém percebesse. Na minha cabeça sabia que as coisas poderiam correr mal. Ainda me lembro de vacilar quando entrei no lobby do hotel com uma mala pequena. Na bagagem tinha uma pequena pistola automática com sete balas, um fio de aço, um pente que continha uma agulha fina e um batom de defesa com uma lâmina. Na minha cabeça repetia as palavras: “Calma. Respira fundo. Tudo vai correr bem. Este trabalho é importante e é mais difícil que o habitual mas tudo vai correr bem.” Mas na verdade não conseguia apagar a estranha sensação de que nada era normal e de que um movimento em falso resultaria na minha morte. A minha respiração, estranhamente controlada, não tinha nada a ver com a velocidade do meu coração. Um fio de suor humedeceu-me as axilas. Os dedos com formigueiros. A tensão transformou-se em premonição, em aviso repetido para eu sair. Mas era tarde demais. Olha há novidades na televisão…
“A TDM recebeu um vídeo do “Estripador”. Neste vídeo vê-se uma mulher aprisionada num local indeterminado. O vídeo chegou à nossa redacção com a ameaça de que se não for passado no telejornal a mulher morre. A polícia foi informada de imediato. O governo reuniu-se de emergência e expressou extrema preocupação através do seu porta-voz. Espera-se que novas medidas de segurança sejam anunciadas dentro da próxima hora. O vídeo, que veremos de seguida, contém imagens altamente chocantes que podem ferir a susceptibilidades de pessoas mais sensíveis.”

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