Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasRealismo, mito e melopeia encantatória Manuel Afonso Costa - 7 Abr 2016 Riço Direitinho, José, Breviário das Más Inclinações, Asa, Porto, 1994. Descritores: Romance, Portugal, Tradição, Identidade, Ruralidade, Memória, Pathos. [dropcap style’circle’]J[/dropcap]osé Riço Direitinho nasceu em Lisboa no mês de Julho de 1965. Formou-se em Agronomia, e desenvolveu estudos em Economia e Sociologia Rural. A sua primeira produção significativa no plano literário foi a A casa do fim, obra que imediatamente revelou um escritor poderoso e original. Esta obra foi lançada em 1992, tendo-se seguido com curto espaço de tempo mais dois romances elaborados na mesma linha do romance de estreia e que foram os romances Breviário das más inclinações, em 1994, e O Relógio do cárcere, em 1997. José Riço Direitinho situa a sua obra romanesca num registo que oscila entre o realismo rural e o mítico; e é essa mistura de cultura popular com um sabor etnográfico, com uma memória que tende a mitificar as personagens que lhe confere a sua grande originalidade. Não será demais referir também uma poética do maravilhoso, ainda que ancorado num enorme acervo de superstições e crenças populares. Realismo, Mito e Melopeia Encantatória O livro começa muito bem como devem começar os bons livros, para aguçar o apetite e sobretudo estimular curiosidade e dúvida. O princípio de um livro pode tornar a sua leitura inevitável. Tudo deve ser dito e ao mesmo tempo nada. E isso não é fácil. Só os grandes livros, como o Pedro Páramo de Rulfo, a Conversa na Catedral de Llosa ou Heróis e Túmulos de Sábato, para só citar autores sul-americanos, com os quais Riço Direitinho tem afinidades. É verdade que tem também afinidades com autores galegos, como Valle Inclán ou Camilo José Cela e até mesmo com o transmontano Torga… O livro começa assim: “Depois de se ter deitado com um homem, lavava-se sempre numa infusão de folhas de arruda, apanhadas ao luar, e bebia tisanas com sementes de funcho e de sargacinha-dos-montes, para que as regras não lhe faltassem. De maneira que nos dois meses seguintes à noite em que encontrou na eira uma maçaroca de milho-rei, não acreditou que estivesse grávida…” (p. 11). Assim começa este romance que narra a vida e a morte (aos 33 anos, como Jesus) de José de Risso, um homem de virtude que nasceu marcado nas costas com um sinal em forma de folha de carvalho. Pelo meio há o enorme lobo de Espadañedo, um lobisomem que descia da serra quando a Lua lhe estava de feição; há receitas de chás e de tisanas que curam do mau-olhado, da má-sina com as mulheres, dos amores infelizes, das galhaduras, dos maus pensamentos; há chás e tisanas que fazem recobrar os ímpetos aos homens; há também Purísima de la Concepción, a muito bonita e alegre viúva galega, de quem se dizia (sem se ter a certeza) que encomendara a morte do marido a um matador de touros andaluz a quem as mulheres casadas chamavam, com disfarçado fervor e muita paixão contida, Niño del Teso. Este romance de José Riço Direitinho, o Breviário das Más Inclinações, destacado pela crítica e premiado com o Grande Prémio do Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores-APE, fala sem problemas de crenças, superstições e mundos envolvidos por atmosferas obscuras e estranhas. Jogando com efeitos elípticos e recorrendo a prolepses e analepses permanentes, as primeiras anunciadas no texto apócrifo que serve de guia para a acção, uma vez que todos os capítulos são precedidos de uma curta passagem de um outro texto, em edição fac-simile, intitulado Vida e Morte de José Risso, de autor anónimo, o nosso autor consegue pôr de pé uma história envolvente; insólita mas verosímil. Mas os livros de José Riço Direirinho começam várias vezes pois a sua ideia estilística de base assemelha-se às melopeias populares que circulam pelas feiras, ou circulavam, e que conferiam às histórias uma inequívoca aura mítica e ao mesmo tempo plenamente realista. O personagem central deste romance é José de Risso marcado por eventos que lhe conferem o estatuto. Antes de mais ele é fruto de uma única noite de amor de sua mãe. Depois essa noite de amor ocorre com um estranho, um estrangeiro digamos, que a engravida e a abandona sem saber que a engravidou. Depois ainda a mãe morre durante o parto, José de Risso nasce portanto já órfão, totalmente órfão, e finalmente nasce estigmatizado por um estranho sinal nas costas, como se fosse marcado à nascença, por uma mancha vermelha em forma de folha de carvalho. E é tudo isso; a que se acrescenta uma também estranha propensão para lidar com plantas medicinais e curativas; que compõe a sua aura e a sua sina, ou seja uma fama de curandeiro abençoado mas também de desgraçado e vítima de mau olhado. Um estatuto ambivalente que o autor do romance explora sempre muito bem. Por exemplo: “Nasceu com a cabeça envolta nos âmnios. Há-de ser sempre feliz e terá o dom da adivinhação”, isto apesar de ter nascido “no dia vinte e quatro, dia de S. Bartolomeu, em que o diabo anda à solta”. Pequena antologia de dizeres: Depois de saber que estava grávida, procurou cumprir tudo para que a criança nascesse sem problemas: deixou de usar o cordão de ouro ou outro qualquer fio, para o bebê não nascer com o cordão umbilical enrolado à volta do pescoço, que é sempre sinal de morte prematura […]. (p. 12) “antes de sair de casa, no começo desta noite irremediável, bebera chá de romã e loureiro para que o fel das entranhas não lhe subisse à boca. Esqueceu-se que essa infusão era também a mezinha das mulheres estéreis” (17). A mulher acordou com um pesado bater de asas sobre as telhas. Dormira toda a noite. Ao abrir os olhos viu, pelas frinchas das tábuas do telhado, a primeira claridade do dia. Sobressaltou-se com o rumor dos pássaros, e logo depois com a ausência do marido: a cama não tinha sido desmanchada do lado dele. Só nessa altura conseguiu perceber que os grifos tinham voltado a Vilarinho dos Loivos, e que, quase sempre, deviam estar a voar em círculos largos sobre um corpo morto, à espera. (p. 41) “uma insólita nuvem de pirilampos cobriu, pelo lado de fora, a janela do quarto.[…] Enterraram-na no final da tarde do dia seguinte, no canto do cemitério onde as mandrágoras e as beladonas teimavam em crescer durante todo o ano” (p. 61-62).