Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasCondição Humana: A Artificialidade do Espírito Manuel Afonso Costa - 31 Mar 2016 Calvino, Ítalo, O Barão Trepador, Teorema, Lisboa, 1999 Descritores: Literatura Italiana, Realismo Fantástico, Antepassados, Tradução de José Manuel Calafate 310 p., ISBN: 972695-357-X Cota: 821.131.1-31 Cal [dropcap style=’circle’]Í[/dropcap]talo Calvino é um dos escritores italianos mais representativos da literatura italiana do pós-guerra e de todo o século XX. Nasceu em Cuba na cidade de Santiago de las Vegas a 15 de Outubro de 1923 de pais italianos que logo regressam a Itália; vindo a falecer em Siena no dia 19 de Setembro de 1985. Foi um dos mais importantes escritores italianos do século XX. Tendo-se formado em Letras, dedicou-se à política desde cedo e participou na resistência ao fascismo durante a Segunda Guerra Mundial como membro do Partido Comunista Italiano, Veio a abandonar o partido em 1957, através de uma carta de desfiliação que se tornou célebre. A sua primeira obra foi este Atalho dos Ninhos de Aranha em italiano designado Il sentiero dei nidi di ragno publicado em 1947, ainda sob a influência da estética e ideologia neo-realista e da sua militância comunista e de resistência. Uma das suas obras mais conhecida e mais genial é As Cidades Invisíveis, ou seja Le città invisibili de 1972; onde se evidenciam as personagens históricas de Marco Polo e Kublai Khan. Quanto a mim a sua obra mais importante é contudo o não menos famoso livro Se Numa Noite de Inverno um Viajante. Condição Humana: A Artificialidade do Espírito Este livro como os que imediatamente o antecedem e depois se lhe seguem denunciam uma evolução estranha em Calvino, relativamente à sua estreia como romancista, que num espaço de tempo muito curto passa de uma espírito de aggiornamento de partisan para uma atitude misantrópica anti-histórica e até aparentemente anti-humanista; e nesse sentido pós moderna inequivocamente, no sentido em que a pós-modernidade se opõe às metanarrativas da modernidade para me exprimir como Lyotard nas suas obras sobre o tema, em particular a Condição Pós Moderna e a Pós Modernidade Explicada às Crianças, este no quadro de uma intensa polémica com Jurgen Habermas, o que quer dizer que pondo em causa as grandes metanarrativas da modernidade, o autor põe consequentemente em causa a questão do sujeito, do sentido e a questão do humanismo. Foi provavelmente a perda das convicções e crenças do resistente e do militante que empurrou Calvino para este distanciamento relativamente à realidade acompanhado pelo culto de um non sense disruptivo, desagregador, irónico, céptico ou mesmo niilista e portanto a substituição de um realismo tout court por uma forma hilariante de realismo fantástico e absurdo. Ítalo Calvino insere-se numa linha genealógica da evolução da Teoria do Romance que favorece uma ideia de personagem reflexiva e de narrador problemático. Os romances de Calvino são sempre ao mesmo tempo ensaios brilhantes que exploram de maneiras diversas a condição humana, histórica ou não. Algumas vezes sente-se a tensão diacrónica nos textos mas outras vezes o autor abandona-se a uma reflexão estrutural sem pudor de mergulhar nas águas límpidas da metafísica, da ontologia e da ética; embora os seus textos não percam nunca um sabor absolutamente ficcional e romanesco. É ele mesmo que, auto consciente de uma intencionalidade explicitamente heurística, nos diz, no prefácio aos Nossos Antepassados, que pretendeu com essa trilogia inventariar tipologicamente modos da aventura e experiência humana. Esta tipologia é conceptual e simbólica e não empírica. No Visconde Cortado ao Meio perpassa a consciência de que a vida humana é marcada por uma contingente incompletude disfarçada de estrutural, necessária ou constitutiva. Devem ter-se em atenção os mecanismos ideológicos de reificação e alienação travestidos de inevitáveis e dogmáticos. Aí se mostra portanto o caminho para a superação das mutilações impostas pelos condicionalismos sociais e, eu acrescentaria, e ideológicos. Em O Barão Trepador problematiza-se a sociabilidade e o conflito sempre latente entre o indivíduo e a sociedade e portanto os modos de procuração de uma completude que não aliene um dos elementos em jogo. E no Cavaleiro Inexistente evidencia-se a questão mais radical do Ser e os modos ao alcance do ser particular de poder alcançar uma plenitude existencial. Todas as questões modernas das hermenêuticas da suspeita se equacionam na sua obra, em particular nesta trilogia de que O Barão Trepador faz parte, algumas de uma forma genialmente pré monitória. Voltemos ao Barão Trepador. Sinopse: Cosimo, um jovem nobre italiano do século XVIII, revolta-se contra a autoridade paterna e resolve trepar a uma árvore, depois passa de árvore em árvore e aí permanece durante o resto da sua vida. É espantoso e hilariante ao mesmo tempo o modo como ele se adapta a uma existência aérea. Ele consegue fazer tudo em cima das árvores: caçar, semear e colher; namorar, divertir-se com os amigos que vivem no chão e mais ainda. Lá de cima do seu poleiro arbóreo o barão assiste a tudo no seu tempo. Em boa verdade o barão trepador não se revolta apenas contra o pai, ele revolta-se contra a humanidade do seu tempo, quer dizer contra os valores, as mentalidades e a cultura do seu tempo. Este romance de Calvino é para mim de uma importantíssima relevância ideológica. O homem é para mim, apesar do seu suporte biológico, um ser essencialmente artificial e artificioso, quer se queira, quer não. A sua capacidade de adaptação é notável, eu diria mesmo, absoluta. Nesse sentido o homem não tem natureza, ou seja, o próprio da sua natureza é não ter natureza, a essência própria do homem é a sua existência e a capacidade de adaptação a todas as situações que a existência lhe coloca. O barão que decide e consegue viver em cima das árvores é um bom exemplo. Não há limites à capacidade artificial da humanidade. O barão não aprendeu a voar, mas tê-lo-ia conseguido, mais tarde ou mais cedo, se precisasse, como veio a acontecer com os seus descendentes. Um dia a humanidade irá viver em outro lugar do Cosmos como Lyotard intui ao abordar o tema da sobrevivência da humanidade no quadro do desaparecimento do nosso Sistema Solar, no célebre livro, O Inumano. Mas isso ainda vem longe. Relativamente ao livro de Lyotard, como facilmente se percebe, eu só não estou de acordo com o título do livro que me parece absolutamente errado. Não há nada de inumano nessa possibilidade, bem pelo contrário. O barão desencadeia ainda outro processo tipicamente humano, o do distanciamento. É um sonho humano permanente, o da superação e da distância. O facto de ser para o alto não é desprezável e ainda menos desprezível. A procura de um corte com as amarras, de um soltar das tenazes que prendem à terra e que no caso visa a altura, tem os contornos de uma sublimação e de uma elevação em direcção ao céu, enquanto metáfora salvífica e paradisíaca. Se fosse possível todos os humanos viveriam um tempo, ou sempre, longe do chão. Só nas alturas em rotura com as formas de vida em que nos encontramos mergulhados no lugar em que vivemos enclausurados em horizontes limitados e estreitos, como numa cela, seríamos talvez melhores; procurando portanto uma descentração relativamente às amarras geocêntricas e geomórficas é que se pode ver o Mundo e adquirir uma perspectiva panorâmica e globalmente livre. No fim de contas é o que sempre fez o Espírito. Por outro lado o processo de auto individuação dinâmica pressupõe ir do local e familiar para o universal e estranho, ir do Mesmo para o Outro. Do Ego para o Mundo. Então provavelmente um dia ir da terra para o ar e a água. O Barão Trepador coloca de facto muitas questões e representa múltiplos desafios. Cosimo percebe que a sua ousadia terá um preço, ou pelo menos descobre-o, e que sair da convencionalidade de um mundo da necessidade e da segurança que ele oferece para entrar deliberadamente no domínio precário da contingência significa trocar a felicidade mesquinha, pela dúvida, pela improvisação, pela imprevisibilidade trágica do aventureiro, geradora quase sempre de incompreensão e mesmo de hostilidade. Com isso vem a solidão mas é assim a vida de todos os aventureiros e de todos os visionários e são eles que marcham à frente da humanidade, triunfantes. A solidão de Cosimo é a solidão de todos os que se afastam da banalidade, da vulgaridade, da domesticidade e assumem os desígnios próprios da sua humanidade. Esta fuga não é uma alienação da condição humana mas a procura da verdadeira condição humana, aquela que volta costas à natureza para entrar deliberadamente no universo abstracto e artificial do Espírito.