Só conversa (吹水)

Strange days have found us
Strange days have tracked us down
They’re going to destroy our casual joys
We shall go on playing or find a new town, yeah

The Doors, Strange Days

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]ão dias estranhos, estes que vivemos agora em Macau, e se não se pode dizer que estes dias tenham vindo atrás de nós e nos tenham encontrado, pode-se dizer que fomos nós que os procuramos, e se não formos cuidadosos, pode ser que arruínem a nossa felicidade. Discutem-se por aí agora questões que tiveram todo o tempo do mundo para ser discutidas, como sejam a identidade, e que papel desempenha cada um no contexto da RAEM. Tudo isto tem sido o mote para as mais variadas análises, que vão da simples opinião até a estudos mais ou menos elaborados, e se há alguma conclusão que pode ser retirada, é que não há conclusões a retirar. Tudo varia conforme o que se procura saber, e junto de quem. Macau é assim, uma terra de contrastes e de pessoas que contrastam, e permitam-me o lugar comum, “cada caso é um caso”.
Quer no que concerne à questão da identidade, ou da forma como se encara esta realidade tão particular que é Macau, há um factor que é preciso ter em conta: a falta de um valor essencial que seja comum a todas as comunidades, algo precioso, original e único que seja um resultado do convívio entre todas elas, que tenha perdurado e cuja necessidade de preservar fosse unânime – em suma, uma matriz. Nunca seria fácil, mesmo que houvesse uma pretensão a tal, uma vez que Macau foi sempre tido como um lugar de passagem, parte de um plano maior, e nunca uma meta. O território usufrui hoje de um estatuto que é mais uma vez temporário, mesmo que os cinquenta anos estabelecidos até nova mudança sejam mais do que qualquer outro período da sua história recente na mesma condição. Parece confuso posto nestes termos, mas vou elaborar.
O que se sabe de Macau dos tempos remotos não é muito diferente daquilo que hoje temos; podem ter desaparecido os pescadores, mas o passatempo a que estes já se dedicavam antes de chegarem os portugueses permanece e é a principal fonte de receitas, senão a única com relevância: os jogos de fortuna e azar. A história muitos de nós conhece mais ou menos bem, mas é já partir do século XX que Macau adquire a forma tem actualmente, e nesse particular foi sempre refém dos sobressaltos da História dos dois elementos que entraram na sua génese: Portugal e a China. O primeiro, longínquo e nem sempre atento administrador, passou por três fases distintas após o evento da República, e se por um lado o gigante chinês atingiu o mesmo estatuto quase em simultâneo, tudo aquilo que veio a seguir, e praticamente até aos dias de hoje nunca transmitiu uma sensação de segurança que garantisse a Macau um desenvolvimento paralelo à sua situação política. Durante estes cem anos não se pode dizer que tenha havido um período de estabilidade que permitisse a Macau que aparecessem mais do que duas gerações, e com elas um conjunto de valores comuns que se pudessem enraizar ao ponto de valer a pena lutar por eles. Não é fatalismo, é apenas a única realidade que temos.
Por isso é que me causa alguma estranheza que se faça isto agora e com carácter de urgência. Ninguém se ralou durante os 15 anos que se passaram desde a transferência de soberania em chegar a consenso algum sobre temas como a identidade macaense, o papel da comunidade portuguesa ou como é o português-tipo em Macau, e numa perspectiva mais abrangente, qual o “peso” de cada um no contexto actual da RAEM – posso ir adiantando que o meu anda pelos 80 quilos, um pouco mais quem sabe, mas nunca acima dos 85, garantidamente. Toda esta súbita separação do trigo do joio dá até a entender que se prepara algo semelhante às Leis de Nuremberga de 1935, e torna-se urgente encontrar um lugar ao sol.
Fora de brincadeiras, e voltando à questão do consenso: não somos um povo de consensos, temos um carácter que eu não chamaria de vincado, mas antes rígido, confundimos firmeza de princípios com casmurrice, e não temos a rectidão que muitas vezes é necessária para dar o corpo ao manifesto. Neste particular julgo ter sido Martim Moniz o último a fazê-lo, antes de ser inaugurada a modalidade de “heroísmo de bancada”, em que nos tornámos exímios. As descobertas? Bem, detalhes à parte, foi no rescaldo dessa epopeia que chegámos aqui e por cá continuamos, sem que para tal nos fosse necessário ser atribuído um papel, a não ser que estejamos aqui a falar do BIR, o que nesse caso será antes um cartão. Se somos titulares deste cartão que nos permite usufruir um estatuto de igualdade perante os restantes portadores do mesmo, devemo-lo unicamente à diplomacia – não à última administração portuguesa, e muito menos ao Governo português. Aqui quando digo governo falo obviamente nos sucessivos governos, que depois de se terem servido de Macau para financiar campanhas eleitorais e outras pantominices antes da transferência de soberania, vão-se demitido lentamente dos compromissos que assumiram inicialmente com Macau, revelando sempre um distanciamento que ora se vai acentuando, ora se fica pelas boas intenções.
E é esta a imagem que passamos para os outros, para os que partilhando do mesmo estatuto que nós, e que nos é dado pelo tal BIR, têm consciência da nossa desunião e do nosso orgulho que consideram “bárbaro”, por culpa das vezes em que nos recusamos a parar para olhar um pouco à nossa volta e entender alguns sinais. A pouca queda que temos para o associativismo, que no nossa caso é misto de provincianismo e vaidade, faz com que a comunidade chinesa diga de nós que “só temos é paleio”, ou no dialecto cantonês “chui sôi” (吹水). E sim, aquele “sôi” é o caracter para “água”, que é como quem diz “saliva”, que temos de sobra e não nos inibimos de gastar. Mas há um lado positivo em tudo isto, e que foi abordado num dos tais estudos “à la minuta” que por aí apareceram: o direito de matriz portuguesa. E isso, meus amigos, é o princípio, meio e fim de todas as coisas, o que nos segura a nós e aos outros, todos os que têm BIR e alguns que não têm, e foi o maior tesouro que aqui deixámos. Fico a torcer para que tratemos dele com a maior reverência, e que lhe demos o corpo ao manifesto, se necessário. E eis finalmente qualquer coisa que valha a pena esse sacrifício.

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