Tribunal, “tops” e tiques

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão nos levem o Velho Tribunal. Não transformem o Velho Tribunal numa nova biblioteca cheia de ares condicionados e janelas cromadas. A sério, até parece uma boa ideia mas não é. Até parece um acto em defesa da cultura, mas não é. Não tenho nada contra livros, muito pelo contrário, e muito menos contra bibliotecas, mas o tribunal tal como está funciona e não precisa de ser alterado- talvez um reboco aqui ou acolá, talvez pintar-lhe as paredes exteriores de várias cores, e depois mudar outra vez. Talvez não fazer nada. Transformá-lo numa biblioteca será um desperdício pois essa pode muito bem funcionar noutro sítio qualquer. Se mais fosse preciso, a realização do festival de literário de Macau, que o tem vindo a utilizar como quartel general nos dois últimos anos aproveitando as suas capacidades multidisciplinares, as recentes actuações de teatro do grupo Hiu Kok, ou as várias exposições que por ali têm ocorrido chegam para perceber o porquê deste pedido. Há algo de intrinsecamente apelativo para um artista quando se depara com um espaço que já teve outros propósitos, como fábricas antigas, ou antigos tribunais, há algo de extremamente atraente e convidativo em desenvolver expressões artísticas em espaços nus, de concreto à vista, que parecem predispostos a tudo, disponíveis para acolherem as mais díspares manifestações. Tal como numa pintura o artista deve perceber quando é altura de parar, neste caso é preciso entender não ser necessário embelezar nem reconverter, bastando conservar. Poupa-se dinheiro e dota-se a cidade de um espaço multidisciplinar, atraente para as artes, onde tudo pode acontecer bem no centro da cidade. Quando tanto se fala na promoção da criatividade e das artes em geral, que melhor do que um local como o Velho Tribunal para a sua promoção? Entidades governamentais competentes, pensem nisso, por favor. Ainda estão a tempo de mudar de ideias.

Tops

Das coisas mais irritantes com que nos deparamos nos dias de hoje é a proliferação de rankings para tudo e mais alguma coisa. A praia mais bonita do mundo, a cidade mais não sei quê, os principais destinos para umas férias assim, os melhores locais para não sei quê assado, os mais ricos, os mais bonitos, os mais…. livra! Não há traseiro que aguente. Listas feitas para idiotas que não sabem distinguir, para incapazes de perceberem o que é melhor para eles, para bandos de carneiros se poderem juntar às moles e tirarem mais uma selfie à frente do não sei quê que está no top de não sei que mais. Mas, pior do que isso, quando se fala de destinos turísticos, é o orgulho pateta dos autóctones, quiçá mais seguros de si por viverem na cidade com mais igrejas, ou com mais pessoas de calções cor-de-rosa. Depois vêm os resultados. Porque quando se atraem muitas moscas o melhor é dar-lhes poias com fartura pois, caso contrário, o mosquedo vai varejar para outras paragens. Coitados dos locais, entretanto, zonzos no meio do zumbido, nauseados pelo número de poias bruscamente plantadas aqui e acolá. É o que me ocorre quando olho para a minha cidade natal, Lisboa, a ficar descaracterizada, dia após dia, em função de um fogo fátuo chamado turismo, embriagada em gourmets e boutiques, atarantada com tuk tuks e quejandos como se andar de triciclo motorizado fosse coisa de local desenvolvido e não uma necessidade de povos com menos recursos como os tailandeses, os cambojanos ou os indianos, fartos que estão de não terem autocarros não poluentes como Lisboa ou sistemas de metropolitano abrangentes. O turismo, esse tesouro dos países subdesenvolvidos, essa arma de arremesso de políticos populistas e sem ideias, especialmente quando é gerido de forma provinciana como em Portugal (e noutros locais mais próximos de nós) é apenas um bem temporário e nunca uma solução de fundo pela quantidade de impactos negativos que provoca e já mais do que estudados. Mas as pessoas não aprendem, não querem aprender ou, ignorantes por falta de mundo, não sabem. Portugal, em boa verdade, só evolui na aparência porque, lá no fundo, continua a ser formado, na sua maioria, por um povo de simplórios com tiques de grandeza desejosos de serem aceites entre os que considera importantes nem que para isso tenha de se prostituir.

Tiques

E por falar em tiques, mais ou menos pategos, custou-me ver o Festival Literário de Macau abrir com uma sessão em chinês… e inglês. Depois de ter sido revelado à imprensa a política da organização em não convidar autores banidos na China , foi também banido o português na abertura oficial, idioma oficial de Macau para os mais distraídos, e substituído pelo inglês, língua oficial de Hong Kong. Até percebo os desejos de internacionalização do festival e consequente reorientação estratégica ao abrir o elenco a escritores de outras línguas que não o português e o chinês para dar mais mundo ao evento, mas numa cerimónia de abertura de um evento organizado por um jornal português, numa terra onde os simbolismos políticos são tão importantes, com a presença do Secretário Alexis Tam que representa a cultura do território e fala português, numa sessão onde, ainda por cima, existia tradução simultânea, por mais que tente entender não consigo. A não ser à luz da eterna reverência portuguesa que nem aqui, tão longe de casa, continua a assomar nos comportamentos e de um processo de autocensura que, como o próprio convidado do festival, Chan Koonchung, dizia ontem nas páginas deste jornal, “é sempre uma das coisas mais perigosas”. Mas não pensem que tenho algo contra o festival, muito pelo contrário. É, provavelmente, o evento mais interessante do território. Mas não me lixem. Full stop.

Música da Semana

David Bowie – “We Are Hungry Men”

“We are not your friends
We don’t give a damn for what you’re saying
We’re here to live our lives
I propose to give the pill
Free of charge to those that feel
That they are not infertible
The crops of few, the cattle gun
There’s only one way to linger on
So who will buy a drink for me, your
Messiah”

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