VozesO ouro da capital sem abrigo Fernando Eloy - 2 Mar 2016 [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão vou esconder o alívio que sinto por já ter passado mais uma gala dos homenzinhos dourados com nome de porteiro. Um momento conhecido por celebrar o cinema mas que, em boa verdade, tenho-a por ser precisamente o contrário. Um sinal dos tempos onde a rendição ao deleite dos brilhos é muito mais importante do que qualquer reflexão de conteúdo. Este ano, o ponto alto foi a não nomeação de actores negros, uma polémica que, sinceramente, apesar da minha ascendência africana, não subscrevo porque quotas só por que sim é coisa que me enerva. Para o ano sugiro uma polémica à volta da ordem de entrega dos galardões. Uma vez que começam dos menos importantes para os mais importantes, interrogo-me porque o de “melhor actor” é entregue depois do de “melhor actriz”. (Ema Watson, se estiveres a ler isto fica aqui a sugestão para 2017). Enfim, polémicas à parte, apesar dos milhões de caracteres que lhes são dedicados, das inúmeras páginas de jornal e da enormidade de tempo de antena que lhes são dedicados eu até podia passar ao lado do assunto, pois podia. Podia estar a escrever sobre outra coisa qualquer, pois podia. Mas gosto de cinema e estou farto de comportamentos ovinos. A questão não é quem ganha ou quem perde mas a quantidade dos quem sem esta marmelada de evento não passam, como os mosquitos não dispensam o brilho das luzes mesmo que o resultado desse fascínio seja o churrasco. Só por isso perdemos todos. A forma patética, a reverência e o quase fanatismo com que a festa da Academia de Beverly Hills é seguida, como se estivesse a anunciar alguma coisa realmente importante, como uma boa colheita, é no mínimo redutora. Perdem-se noites, tardes, dias a discutir sobre quem vai levar, ou deixar de levar o alienígena dourado para casa como se isso fosse realmente digno de nota. De uma forma benigna, poder-se-á dizer que a culpa é do cinema, do seu poder, um grande e importante poder, digo eu. Mas não é o cinema que está em causa aqui. Só de forma aparente, porque a realidade é que a cerimónia das estatuetas dos áureos carecas é apenas uma contingentação de mercado e, no limite, uma tentativa de asfixia do cinema e é isso que me desgosta em toda este assunto. O que este evento é, isso sim, é a força do marketing, e não a do cinema, porque o cinema não se reduz àquela meia dúzia de filmes que anualmente por ali desfilam. Concordo que a ideia que fica, claro, é que aquilo é o cinema todo porque é essa a ideia que as grandes produtoras norte-americanas precisam de passar. Para elas, o cinema começa e acaba naquela estrita selecção. Não que os filmes em presença sejam normalmente maus, ou normalmente bons, mas porque o esforço colocado na cerimónia dos homenzinhos carecas é apenas desenhado para condicionar toda uma produção mundial, pois os filmes que por ali não passam praticamente não existem em termos de mercado ou têm muito mais dificuldades em ser distribuídos. Em boa verdade, é o marketing no seu melhor, verdadeira lamparina de centenas de megawatts, porque promove e executa na perfeição a estratégia dos grandes estúdios. Ou seja, como grande parte dos filmes dão prejuízo, os estúdios necessitam de pelo menos um blockbuster no catálogo, de pelo menos uma nomeação, nem que seja para a “melhor maquilhagem”, para que pelo menos um dos chouriços da tábua se destaque da mole e assim possam pagar o prejuízo dos outros, que raramente são filmes independentes de qualidade mas sim produtos de enchimento de natureza duvidosa. Basta ver um canal de filmes… Como dizia Carlos Morais José, director deste jornal, numa entrevista recente à imprensa local, “os leitores são inventados pela literatura”, o que faz todo o sentido e parece-me perfeitamente possível de aplicar também ao cinema. Todavia, ao promovermos até à loucura este mito dos douradinhos da Academia temo pelos cinéfilos que esta alienação inventa. O cinema das carpetes vermelhas e dos vestidos faustosos (os brilhos) numa cidade que alberga umas das maiores populações de sem abrigo nos Estados Unidos, que já vai nos 44.000 segundo a New Yorker, ao citar a Los Angeles Homeless Services Authority. De positivo, apenas o facto de alguns dos premiados aproveitarem a massiva exposição mediática para levantarem assuntos realmente importantes como DiCaprio fez, e bem, ao alertar para o aquecimento global. O resto é um potencial churrasco de mosquito. Música da semana “Heroes” David Bowie I, I will be king And you, you will be queen Though nothing will drive them away We can beat them, just for one day We can be Heroes, just for one day And you, you can be mean And I, I’ll drink all the time ‘Cause we’re lovers, and that is a fact Yes we’re lovers, and that is that Though nothing, will keep us together We could steal time, just for one day We can be Heroes, for ever and ever What d’you say?