Trudno byt’ bogom, Hard to be a God, Aleksei German, 2013

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]m pouco como as imagens de Bosch, este filme é confuso e mostra o ecrã constantemente repleto de corpos dos habitantes desta localidade deste planeta que não é o planeta Terra mas um outro que não fica muito longe e que não evoluiu para lá daquilo que chamamos a Idade Média, que em si é um nome estúpido porque não quer dizer nada, apenas que está no meio. As primeiras imagens parecem mais Brueghel que Bosch, superfícies nevadas com figuras ao fundo mas depois não, e aí começa uma demente perambulação.
Uma das suas figuras é um terráqueo enviado para o meio dos habitantes deste planeta imaginado primeiro pelos irmãos Strugatski e adaptado pelo realizador Alexei German que morreu antes da conclusão das filmagens que se arrastaram por quinze anos e que foi acabado pelo seu filho e pela sua mulher, Alexei German Jr. e Svetlana Karmalita.
É ideal no género. Escatológico, sujo, demente, com muito cuspo e ranho, cagalhões e anões, extremamente sensorial, um permanente lodaçal porque neste planeta a chuva cai com muita intensidade mesmo que durante pouco tempo e todas as pessoas andam sujas e enlameadas e de chapéus cómicos, só o protagonista (pelo menos é o que aparece mais vezes e que constitui a linha que nos guia ao longo do filme) é que tem a pele branca e mostra um tronco limpo de tempos a tempos. E algumas mulheres. Um aristocrata deve andar limpo e cheirar bem, o que constitui firme contraste num local onde tudo e todos fedem.
A câmara acompanha este principal, Don Rumata, que é uma espécie de aristocrata ou deus ou descendente de deuses, seguindo-o verdadeira e obsessivamente ao longo de uma extensa perambulação e os episódios que se sucedem parecem não ter grande relação entre si, apenas o deus ou semi-deus no meio de muitos rostos e animais e objectos (e animais) pendurados.
Seria um grande avanço se houvesse mais filmes assim caóticos e com gente suja que (isto eu gosto muito) olha directamente para a câmara como se isto fosse um documentário e talvez porque pode ser mesmo um documentário – é noutro planeta, um que ficou na Idade Média e não chegou ainda ao Renascimento, que é uma queixa que se ouve no filme.
E o Renascimento, onde está? É tentador pensar que isto seria o que a Europa podia ter sido se, como aconteceu neste planeta, a Renascença não tivesse florescido ou porque não ou porque alguma força com propensão totalitária a tivesse impedido de florescer. Aqui chegou a haver algo que não se desenvolveu.
Quem não vir este filme será mais burro. Quem o vir ficará a andar de uma maneira diferente durante algumas horas – enquanto o seu efeito perdurar, um pouco como quando as pessoas eram mais simples e saíam do cinema transformadas. Isto quer dizer que este filme tem um poder transformativo.
Não é inocente que a semana passada aqui se tenha falado de Markéta Lazarová porque há semelhanças na intensidade colocada na criação das imagens. Existem igualmente semelhanças a nível do som, mais precisamente num desfasamento entre as imagens e o som das falas, um artifício estilístico que marca todo o filme, como marca alguns filmes de Sokurov, e que equivale a um sussuro intimista no meio de tanta confusão de gentes.
Não ver este filme é um erro, porque poucos serão tão grandiosos e tão ambiciosos e tão úteis como modelo extremo, como exemplo único.*
A história passa-se num planeta que se encontra com cerca de 800 anos de atraso em relação à Terra, na cidade de Arkanar, no Oltregolfo. 30 cientistas são enviados para estudar a situação. A Renascença não chegou a florescer, a Universidade foi fechada e as mentes mais iluminadas foram perseguidas. Alguns fugiram para Irukan, onde há mais liberdade. Isto é-nos contado no início, depois das imagens frias que parecem Brueghel e enquanto um espertalhão espeta uma lança no rabo de um defecador. Depois começa a dança.
Há uma aparência de conflito. Os Grays e os de Preto, semelhantes estes últimos a um grupo de religiosos, que se disputam no Reino de Arkanar. Eu sei que o livro dos irmãos Strugatski tem uma trama muito mais clara e que Don Rumata tem como missão salvar poetas e cientistas ameaçados por um estado em estado pré-totalitário. No filme este conflito não se define, mas a vertigem de seguir Don Rumata por entre os labirintos de Arkanar é mais que suficiente a olhos gulosos e ávidos de emoções. Se a indefinição foi propositada ou não não sei mas sei que com esta “falta” a navegação de Rumata pelo meio de tantos objectos pendurados, chouriços, animais, chocalhos, pedaços de comida, de pano, a interferir constantemente com a progressão das personagens, se torna inesquecível. Fica aqui o aviso: quem não vir Trudno byt’ bogom pode vir a sofrer com isso.

*como acontece com filmes que se tornam inesquecíveis pela sua imagética particular, como Blue, ou Tetsuo, Querelle, Eraserhead, Markéta Lazarová, Ashes of Time, Der Tod der Maria Malibran, Delicatessen, La Jetée, ou Amor de Perdição.

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