Uma palavra aos jogos complicados

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]precio o meu amigo Albano Martins pela sua forma invulgar de estar na vida, em particular no que se refere a papas na língua. Não as tem e anda bem. É prova cabal de que o meu amigo está a raiar de saúde, o que me deixa feliz. Todavia, se tem razão na língua, essa é questão completamente diferente.
Sem embargo, tenho que lhe agradecer, em abono da verdade, pelas palavras de apoio à nova direcção da APIM que muito lucrará com os sábios e sempre bem intencionados conselhos seus. Especialmente, no que se refere ao Canídromo.
E por falar disso, há que reconhecer quão magistral é a ligação que o meu camarada faz, entre eu, a APIM e o Canídromo. Sim, uma coisa de génio, o qual de facto nem lembra o Diabo, e como tal, nem é de fácil alcance para um “puto da primária” como eu. Decidi que só podia ser coisa boa. Assim, da minha parte vai também como gesto de gratidão uma palavra de carinho, pois quem seria este jovem para o aconselhar? Aí vai : passeie, faça ioga ou crossfit, mas sobretudo tenha cuidado com essa nova gripe que paira por aí – a “canídrome” – que tem por sintoma mais típico, uma obsessão raivosa que ofusca o tino. gran_torino28
Mas indo ao cerne do artigo, permita-me dizer desde já uma coisa. E começarei por tratar o meu amigo por “tu”.
Caro Albano, lamento que escolheste esta forma de expressar a tua opinião. Respeito, pois trata-se de um direito que te assiste e não precisas de justificar perante ninguém. Mas sinceramente, conhecemo-nos há muitos anos, sempre nos demos bem. Tivemos momentos de bom relacionamento profissional. Não sou um estranho para ti, como para ninguém em Macau. Ora, se te soou tão ultrajante a entrevista que dei, estavas perfeitamente à vontade para me ligar, para tirar nabos da púcara. Preferiste lançar-te logo na “surra” moral em público. Tudo bem, respeito, mas lamento.
Não queria tocar mais neste assunto. Mas tal como tu o farias se estivesses no meu lugar, também não me calarei por aquilo que disseste de mim. O público melhor julgará.
Pois bem, achas que eu usei “um caso particular para extrapolar para um universo bem mais vasto” e como tal teria “violado as regras do pensamento científico”. Ora vamos a ver se isso foi assim e que “carradas de razão” são essas.
Para começar, tratava-se de uma questão meramente incidental, que não fazia parte do corpo principal da entrevista. Esta não era sobre portugueses.
Mas quando uma pergunta começa por “Há portugueses que … “, ela significa duas coisas. É sobre portugueses e mais ninguém e só uma parte deles. Podia ter falado dos macaenses e dos chineses, mas a questão se cingia a uma categoria de pessoas, mais concretamente a uma parte dela. Ora, a minha resposta só podia ser interpretada neste contexto. E foi neste sentido dada. Com pesar, não foi esta leitura que escolheste. E tal como o Marques da Silva partiste da visão de que eu teria generalizado os casos. Daí a extrapolação.

Meu caro, não sei como é o teu processo interpretativo, mas chegaste a notar que eu sempre me pautei pelo respeito pelos outros? Sempre me eduquei sendo português de Macau, com as nuances muito próprias de o ser. Diplomacia está no meu sangue, pois esta é a linguagem que deve presidir, numa terra com a história como teve Macau. Talvez pela minha condição de mestiço – aqui no mais neutro sentido da palavra – que me permite discernir as susceptibilidades de vários mundos existentes em Macau.
Sempre fui amigo dos portugueses oriundos de toda a parte do mundo, nomeadamente de Portugal. Durante anos vivi e convivi com eles, entre os quais se encontram alguns dos melhores amigos que tenho na vida. Sem me esquecer das minhas outras costelas, defendi o seu bom nome, sempre que me foi possível, com total espírito de lealdade e de solidariedade. Não tenho que produzir a prova de que nutro profundo respeito e carinho pela comunidade portuguesa residente em Macau, fui e sou um dos acérrimos defensores da sua língua e cultura. Julgo ter contribuído com algo significativo para o prestígio dessa comunidade em Macau, pelo menos fiz a parte que me cabia. Não o faço por correcção política ou por mero favor. Faço-o pelo português que orgulhosamente também sou.
Tens razão quando falas do respeito pela diferença, da tolerância pela diversidade cultural. Já reparaste que é o que ando a fazer nestes anos?
Foi pena não teres sequer considerado isto quando embarcaste na tua reprimenda.
E sabes que mais? Tenho legitimidade de sobra, quer para enaltecer como inúmeras vezes faço, quer para criticar qualquer português que seja, esteja onde eu estiver neste mundo. Não como forasteiro da comunidade, mas como um que faz parte dela.
Ora, no caso vertente à pergunta que me foi feita, nos termos que já expliquei, apontei o dedo para certos casos que não abonam o bom nome da comunidade portuguesa. Apressaste-te logo em tirar conclusões. “Há coisas” dizes “que não se devem nem pensar alto e muito menos sair da boca para fora, por respeito para com a diferença, na igualdade”. Pois, quando tu presencias uma situação em que um patrício teu se porta mal em relação aos outros, nem sequer pensas alto e muito menos sai algo da tua boca para fora quanto a isto, por respeito para com a diferença, na igualdade?! Francamente, Albano, não te reconheceria assim! Tal como eu, podes não despoletar uma reprimenda por iniciativa própria, e guardar para ti durante anos a fio. Mas se te fizerem a pergunta sobre a existência de tais comportamentos, não te estou a ver calado! E “doa a quem doer” como bem nos habituaste!
E sabes porque não ficarias calado? Por aquilo que escarrapachaste no teu arrazoado: “o respeito pela diferença e a assunção de que as culturas se aceitam e não se discutem, nem se comparam” que o patrício não sabe ter.
Não fiz mais nada que fazer o que qualquer um provavelmente faria. Ao contrário do que erroneamente supuseste, não fiz deste tema o mote da entrevista que continha outras coisas bem mais relevantes. No fundo não são portugueses “tout cours” que estão em causa mas as atitudes que alguns ainda tomam.
Se a pergunta fosse também para os macaenses, podes ter a certeza de que também responderei positivamente. Também há entre nós casos de conduta incompatível com o respeito pela diferença. Faço todos os anos com os espectáculos de patuá, não sei ainda te recordas da vez que foste assistir. Mas não era o caso.
Se tu me dissesses que nunca foste mal tratado só fico feliz por ti. Mas isto nada diz quanto aos casos que mencionei.
Meu caro Albano, gosto de ti e respeito-te. Agradeço-te pelas dicas da vida que me dás, pois eu com os meus 55 anos ainda tenho muito que aprender. Mas por favor, poupa-me da paternalista lição de moral e de entendimento entre povos. É que – desculpa que eu te diga -, “irrita bués”, fazendo uso do vernáculo agora mais em voga, sobretudo quando repetes o que há anos e anos ando a fazer.
Não é meu feitio falar assim em público, mas não esperem que fique calado quando sinto o peso dos outros nos meus calos.
E, para o teu sossego “canidrómico”, nem eu, nem a APIM somos sócios do Canídromo. A tua impressão sobre os interesses que imaginariamente eu possa aí ter, faz da tua declaração tão irresponsável (ou pior), quanto a que dizes dos outros.
Bom fim de semana, meu querido. Aquele abraço apesar de tudo.

De Miguel de Senna Fernandes

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