h | Artes, Letras e IdeiasA memória do corpo Amélia Vieira - 21 Jan 2016 [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]s sociedades são matérias em transformação constante mas com grandes reservatórios de memória condensada e enquanto à superfície avançam indemnes as ideias, o pensamento e as trocas, as suas estruturas mais pesadas encontram-se inamovíveis. São aterradoramente paradas e silenciosas, imperceptíveis para os apaixonados e aqueles que manejam os futuros, pois que não navegam jamais no oceano gentil dos entusiasmos e sabem suportar até à monotonia o ciclo biológico da vida. Pensamento é acrescentar à realidade definida outros elementos que não estavam lá, dado que o Homem não é exactamente como a natureza: faz-se Humano, inventando-se. Andar pelo caminho do leve é já o princípio natural das sociedades, desmaterializar, tentar combater a escravidão das bolsas atávicas nessa base que não canse por tão imperecível e estática… Estamos no momento transformado e isso sente-se diante dos que marcham adiante. Vem este primeiro prólogo a propósito das eleições presidenciais, deste entrançado de tempos que não culmina numa visão de ecrã único e tridimensional, mas num regresso de fundo que tresanda a mofo. Tal como nas operações físicas, o corpo melhora com… vamos chamar-lhes, novos ares… dado que transformações são revoluções, onde podem ser implantados órgãos novos e membros, transformando para sempre a primeira condição. Se experimentamos uma rinoplastia, passado uns anos o septo está de novo torto na mesma direcção, o efeito dura poucos anos, só o tempo dele restruturar a sua memória, ora, olhando para isto, para o que se vai passar, quarenta anos volvidos sobre aquela “operação cirúrgica”, o organismo social capitulou: eis que vêm todos agora ainda mais veementes ocupar a cena social. Acresce mesmo que não faltam Marcelos, Senhoras de Belém e até Padres. Poder-se-ia dizer — eis um acaso — só que não o é, e numa linha muito estóica permito-me agora considerar: ordenada é a Natureza permeada de racionalidade e nós o princípio passivo que sofremos a acção de uma razão maior, o que faz com que a haver um fio condutor inquebrantável ele se deva a tal desígnio dessa memória que permeia todas as coisas. A memória que criámos de um “pathos” vai certamente marcar toda a estrutura do tema. Por uma qualquer falha do pensamento colectivo, a Nação não tem uma sã consciência da morte, essa noção de rigor e de limite que lhe daria um sentido da prioridade — não, não deseja essa abordagem — bem como desistir dos ciclos que passaram. Somos amigos dos que se foram e não raro mantemos com eles relações de continuidade tais que é difícil saber-se onde ficam nos nossos tempos. É assim no amor, no trabalho, nos pequenos e grandes artefactos, seguros que estamos que toda esta tralha acumulada, não só é riqueza, como requerida por alguém nalgum tempo, e em qualquer lugar. O corpo, na sua memória, não tem espaço para inovar, e uma coisa é consumir o que nos deu o progresso e outra é mudar as rotas do seu sangue. A Nação encontra-se bizarramente no mesmo lugar de há quarenta anos. Até acho que mesmo sem “Revolução” se tinha produzido pela inevitável marcha dos tempos internacionais os mesmos resultados, ou melhor, talvez até tivéssemos exactamente no mesmo lugar volvidos quarenta anos, dado que uma senhora das missões, um afilhado de um ditador e um ex-seminarista , é tudo o que sobrou para a representar. Efectivamente não há mais, não há mais por onde escolher mas, neste mesmo lugar que de quarentena em quarentena se nos apresenta vazio, o século vinte, no início, deu sinais de ser vivo e passível de entendimento revolucionário de vanguarda, em dez anos mataram um rei e um presidente, houve «Orpheu» de Almada, Pessoa, Sá-Carneiro, existiu envolvimento que poderia ter impulsionado o futuro, mas uma avareza insaciável apossa-se de cada um e lá vem o Santo Ofício mascarado em Pide e o Povo fazer o que sempre soube de melhor: guardar a sua herança parada. As leis físicas são alarmantes, sobretudo num local de gente frágil e medrosa pela sua condição estrutural e também pela sua fragilíssima condição social que prefere não ousar naquilo a que tem direito. Nunca esquecem o passado, mas negligenciam o presente e esquecem o futuro. Este corpo, com estados de progresso e de avanços conseguido, o corpo que cresce, onde por vezes as pernas se tornam gigantes e saem da moldura, como disse Eugénio de Andrade, este corpo lembra-se de nós sempre pequenos e nós apenas quiséramos sair da moldura, e ficar, um pouco lá, só no coração, mas não enfiados dentro dela, e então, ele trazendo todos os ecos de antanho, meios mortos, meios arquétipos, vem dizer algo de medonho: pensaram andar, mas basicamente ainda estão parados; e queremos tirar este sangue denso que nos cobre de atraso e lei, como se arrancássemos um órgão congelado. Devia haver um mantra que nos permitisse dizer: — Nação, nenhum de nós forçará a tua morte todos te ensinaremos a morrer, nenhum dissipará teus anos, mas te oferecerá os seus. Fomos guiados para aqui no momento em que não sonhávamos que iria entrar nas nossas vidas este sistema tão programado como os ciclos banais. E nem há que olhar mais para o que está. Tal como o Barco de Peter Pan : eu acho que já o vi este navio há muito tempo, mas nesse tempo eu era feliz. Fatigantes e atormentadas provas nos trazem invariavelmente aos mesmos lugares, e não vale a pena acrescentar que não quero ninguém que se candidate desta maneira, por que esta maneira, mesmo a do tempo em que era feliz, também por isso, ou sobretudo por isso, não quero voltar a lembrar.