Entrevista | Wang Yue, campeão olímpico de Xadrez

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap] este o vaticínio do Grande Mestre Wang Yue em entrevista que teve a simpatia de nos conceder durante a estadia em Macau este fim-de-semana da selecção chinesa de xadrez, actual campeã olímpica e actual campeã mundial de selecções, pela primeira vez, em ambos os casos, na sua história. Foi logo no princípio desta entrevista, ou desta conversa, que Wang Yue surpreendeu pela convicção com que o disse e sem rodeios. Num ambiente relaxado, falamos um pouco de filmes, livros e computadores, do espírito de Macau e do espírito da China, de sonhos – alguns tornados realidade -, do ensino … tudo, claro, à volta do xadrez. Mas o melhor é saborearmos, então, as ideias e discurso deste digno representante da selecção chinesa de xadrez.

Em primeiro lugar, os nossos agradecimentos pela entrevista, apesar de estar muito ocupado com um calendário preenchido aqui em Macau. Quais são as suas impressões acerca do xadrez que tem encontrado em Macau?
Muito positivas. As bases e as fundações do xadrez são melhores em Macau, porque aqui há uma tradição portuguesa e europeia que vem da história de Macau e nota-se que essa diferença atrai mais pessoas para o xadrez do que na China.

Ainda ontem cada um de vocês defrontou ao mesmo tempo 40 jogadores de Macau, numa simultânea no Pavilhão do Tap Seac? Gostaram?
Muito. Grande participação, muitas crianças com os pais, centenas de espectadores, é isso que eu digo: em Macau o xadrez é cada vez mais popular e bem apoiado podemos ver resultados importantes a médio-prazo. Wang Yue

Mas vocês ganharam as 160 partidas, nem sequer um empate para os jogadores de Macau.
É preciso ver que só podiam participar na simultânea jogadores com um “rating” abaixo dos 1800 pontos Elo (nota: sistema similar ao ATP do ténis. Wang Yue tem 2718 pontos), já que se destinava sobretudo às crianças e a promover o interesse pelo xadrez.

E na China há mais o gosto pelo xadrez chinês, o Qianxi?
Sim, sim, entre a população da China conhece-se, pratica-se e dá-se mais atenção ao Qianxi.

Mas vocês recebem apoio do Governo?
Sim, mas mais ao nível da alta competição como no caso das Olimpíadas e do Campeonato Mundial por equipas. A nível de difusão e apoio da aprendizagem do xadrez ainda se está num nível pouco estruturado, pouco generalizado. Em Macau há um maior apoio do Governo com projectos para as escolas e contratação de treinadores, por exemplo da Finlândia e, claro, da China continental. Macau terá o seu próprio Mestre Internacional ou mesmo Grande Mestre dentro dos próximos dez anos, de certeza.

Parabéns pelas vitórias nas olimpíadas e no campeonato mundial de equipas por Países. Penso que até chorou de alegria quando ganhou as olimpíadas. Qual foi o significado para si deste feito histórico batendo equipas de Países onde o xadrez tem grande implantação e patrocínios, tal como a Rússia ou os EUA?
É verdade. Chorei de alegria quando recebemos a medalha de ouro. Era um sonho, um sonho que se tornou realidade. Por outro lado, nas Olimpíadas de 2014 o rating individual dos jogadores chineses não era na altura muito alto, não éramos favoritos; mas eles, nós, soubemos jogar como uma verdadeira equipa. Talvez seja algo como um estilo chinês, o espírito chinês, este saber sermos uma equipa.

Acha que estes bons resultados podem chamar atrair mais apoio do Governo e mais atenção da população chinesa para o xadrez?
Sim, estes resultados vão atrair mais e mais apoios e interesse pelo xadrez. Por exemplo, no meu clube já há muito mais crianças, muito mais jogadores do que antes.

O seu amigo Li Chao, outro grande nome do xadrez, treina crianças. Ele disse numa entrevista que, para ele, os seus estudantes eram família. Para si também?
Sim. Eles são muito acarinhados e através do ensino e da aprendizagem eles e nós próprios evoluímos como xadrezistas e como pessoas. Como acontecia, por exemplo, a Escola de Botwinnik na ex-União Soviética em Leninegrado. Ele próprio evoluía. Sei que quando ensinamos também aprendemos, todos nós evoluímos, como xadrezistas e como pessoas.

Li Chao disse que sonhava que um dia um dos estudantes da vossa escola fosse campeão mundial individual. Acha isso possível?
O nosso clube já tem alguns Mestres Internacionais e Grandes Mestres. Se algum deles poderá vir ser o Campeão do Mundo e quando concretamente é sempre difícil de saber. Por ora, a minha tarefa é formar bons jogadores e esperar que os meus discípulos, pelo menos, me ultrapassem. O importante é dar um passo de cada vez, sempre a melhorar, e um dia, no futuro, talvez…

Alguma comunicação social fala nos seus dois colegas de equipa mais novos, Yu Yangyi (20 anos) e Wey Yi (17 anos) como possíveis candidatos ao título de campeão do mundo, acha possível que isso venha a acontecer com eles ou consigo, ou com outro colega de equipa?
Ainda há uma certa distância entre eles e Magnus Carlsen (nota: Magnus Carlsen, 24 anos, é Campeão do Mundo desde há 3 anos). Na verdade, Magnus é muito, muito forte e ainda é muito novo. Wey Yi e Yu Yangyi são excelentes jogadores. Cada um tem o seu estilo – é muito importante que um jogador tenha o seu próprio estilo -, diferente estilo, tal como Topalov (um ex-campeão do mundo com um estilo de jogo agressivo) e Carlsen (um estilo mais posicional), e isso (ter o seu próprio estilo) já diminui essa certa distância.

O Grande Mestre Wang Yue tem um estilo calmo e posicional e foi assim que há pouco tempo derrotou os seus compatriotas no Grande Torneio de Danzhou, no passado mês de Abril. Acha que é nesse ponto que eles devem melhorar?
Muitos famosos Grandes Mestres, como Kasparov (o mais famoso ex-campeão do mundo da contemporaneidade), são mais tácticos no início e depois evoluem para um xadrez mais posicional, é uma evolução natural, por isso, não é bem esse o ponto a melhorar. Actualmente, aquilo em que estamos a trabalhar é mais no problema que temos e que é muito triste para nós, que é o de sermos muito mais fracos nas partidas rápidas (partidas com cerca de 30 minutos apenas para cada jogador) e nas partidas Blitz (partidas entre 3 a 5 minutos para cada jogador). Sobretudo, nestas últimas a diferença entre o nosso “rating” neste tipo de partidas e o nosso “rating” nas partidas clássicas é muito grande e há muitos torneios em sistema de “knock-out”, onde a passagem à eliminatória acaba por ser desempatada nas partidas Blitz. Temos sofrido amargas experiências por causa deste nosso ponto muito fraco. Os jogadores estrangeiros jogam dez vezes mais partidas Blitz do que nós e é a este ponto que agora temos vindo a dedicar mais atenção nos treinos, tentando melhorá-lo.

Quantas horas mais ou menos treina por dia?
Cerca de 8 horas.

Mas então como é que podia ter mais tempo para treinar jogado partidas Blitz?
Normalmente, estudávamos aberturas, analisávamos partidas e pouco nos preocupávamos com as partidas Blitz. Mas agora mudámos esta preparação porque temos mesmo que melhorar nas partidas rápidas e sobretudo nas partidas Blitz, onde estamos muito abaixo do nível a que estamos nas partidas clássicas, que podem durar várias horas. Quando digo dedicarmos mais tempo, digo mudar este tipo de treino e concentrarmo-nos mais em melhorar o nosso nível de partidas Blitz.

E usa computadores?
Hoje em dia todos temos de usar computadores, especialmente para o estudo das aberturas, certas posições e finais de partidas. Também podemos encontrar facilmente todas as partidas do nosso próximo adversário num torneio nas bases de dados desses computadores. Eu, pessoalmente, também uso, tenho que usar, mas ainda prefiro os livros. Não gosto do computador, mas preciso do computador.

E a nova geração, por exemplo Wei Yi, ainda estuda lendo os grandes clássicos do xadrez?
Acho que não, muito raramente. Estudam quase só através dos computadores.

Acha que ainda é possível um ser humano, por exemplo o campeão mundial, ganhar ao mais forte programa de xadrez? O seu amigo Li Chao, naquela entrevista que referi há pouco, acha que, infelizmente, um humano já não tem qualquer hipótese contra um computador.
Não acho impossível. Em certas posições o computador é muito estúpido. Não as compreende porque privilegia o material, quando por vezes a partida pode estar empatada ou perdida para quem tem material a mais.

Mas então porquê que há mais de 10 anos que nenhum campeão mundial aceita o repto de defrontar o mais forte computador? Acha que, por exemplo, Magnus Carlsen, conseguiria derrotar um computador?
Depende. Acho que se o match for de duas ou poucas partidas, o computador deve ganhar, mas se for um match mais longo, de 10 ou 20 partidas, Carlsen pode ganhar.

Mas num match longo o representante dos humanos vai ficando cada vez mais cansado, ao passo que o computador nunca se cansa!?
É que o computador faz sempre as mesmas jogadas e num match longo pode estudar-se e analisar essas jogadas e acabar por conseguir superar o computador. Nós podemos mudar a abertura, aquele ou o outro lance e ir mudando tudo ao longo do match mas o computador continua sempre a fazer o mesmo tipo de jogadas. Por isso, acho que num match longo a raça humana talvez tenha algumas chances de derrotar a máquina.

E qual é o programa de xadrez que usa e qual é o seu jogador preferido de todos os tempos?
Programa de xadrez, uso o “Stockfish”, agora, qual é o meu jogador preferido de todos os tempos é difícil, há vários. Do tipo de jogo gosto muito de Capablanca e de Kramnik. Capablanca era um génio. E os livros de Capablanca são os mais simples de compreender. Quando ensino xadrez aos meus estudantes, se lhes apresento uma partida de Carlsen eles não a conseguem compreender, mas se for uma de Capabalnca eles percebem, o plano é claro, as jogadas são fáceis de perceber (Capablanca, cubano, foi campeão mundial de xadrez entre 1921 e 1927 e detém, até hoje, o recorde de 8 anos consecutivos sem perder uma partida).

E quem são, para si, os jogadores mais fortes da actualidade?
Carlsen. Anand também é muito forte (Anand perdeu o seu título mundial para Carlsen em 2013).

Num filme de Wolgang Peterson inspirado no xadrez (“Black and white, like day and night”), o campeão mundial diz que o xadrez é “a subtileza de transformar a matemática em arte”. Um conhecido treinador de xadrez na China disse uma vez que de todos os jogadores chineses o Grande Mestre Wang Yue era aquele que melhor compreendia o que era o xadrez. Para si, afinal, o que é o xadrez?
O xadrez é uma fonte de felicidade. Para muitos jogadores profissionais, como Kramnik, o xadrez é principalmente análise, estudo com um computador, transposição dos movimentos e lances para o tabuleiro, adaptados para as partidas, o xadrez é sobretudo uma ciência. Mas, para mim, não é sobretudo uma ciência, mas uma arte e um meio de comunicação. Apreciar o jogo é mais importante do que o torneio.

Naquele filme, o protagonista preferia morrer ou matar a perder uma partida. É mesmo assim? O quê que sente quando perde uma partida num torneio?
Sinto-me mesmo muito mal. Fico zangado. Mas comigo próprio, não com o meu adversário. WY chora de alegria

E o que é que faz para recuperar psicologicamente? Alguns jogadores tentam esquecer vendo filmes, como o seu colega de equipa Li Chao disse naquela entrevista a que me referi antes.
Tento compreender porque é que perdi. Analiso a partida e o meu jogo para que isso não volte a acontecer.

Um outro grande Campeão do Mundo, precisamente aquele que tirou o título a Capablanca, Alexander Alekhine, que por sinal viveu exilado em Portugal onde morreu, disse, numa entrevista à BBC que, na sua opinião, para se ser um jogador de xadrez de topo, não bastava o trabalho árduo ou uma memória prodigiosa. “Tal como um pintor ou um músico, o xadrezista de topo tinha que possuir algo de inato”, que nasceu com ele e que os outros não têm. Concorda com esta opinião? Não é possível a qualquer pessoa medianamente inteligente, com excelente memória, bons nervos e grande capacidade de trabalho, ser um xadrezista de topo?
Acho que sim, que também é preciso um talento natural, com que se nasce. Para além de muito trabalho e capacidade de memorização.

E é muito difícil encontrar esses talentos?
Sim, mas é possível preparar o aparecimento desses talentos e quando se descobrem, despertá-los e proporcionar-lhes boas condições de desenvolvimento, como xadrezistas e como pessoas.

Podem aparecer em Macau?
Podem aparecer em qualquer lugar. Podem perfeitamente aparecer em Macau, onde já se encetou um bom caminho e existem boas condições para o ensino e para a prática do xadrez.

Uma última pergunta: Disse que apreciava muito Capablanca. Há também uma curta-metragem de 1925 onde aparece Capablanca em carne e osso (“Chess Fever”, de Vsevolod Pudovkin). Nesse filme, Capablanca passeava por Moscovo durante uma pausa num torneio de xadrez, quando viu uma bonita jovem moscovita infeliz e a chorar. Capablanca, conhecido pela sua gentileza, aproximou-se e perguntou-lhe porque chorava. O noivo dela tinha ficado obcecado pelo xadrez e nada mais o interessava, tendo-se esquecido do seu próprio casamento. Capablanca promete ajudá-la. Visita o marido e convence-o a desistir do xadrez pelo amor da jovem. Se se visse na mesma situação de Capablanca, o quê que fazia?
Aconselhava-a a aprender a jogar xadrez (risos).

Muito obrigado e espero que gostem da visita que vão agora fazer a algumas escolas de Macau e da vossa estadia em Macau. Agradecia que enviasse o nosso apoio, daqui de Macau, ao jovem Grande Mestre Yu Yangyi, que vai participar num dos mais foretes e prestigiados torneios de xadrez do circuito anual, o “Tata Steel Tournament”, na Holanda, entre 16 e 31 de Janeiro, pela primeira vez. Por cá, fica a promessa de divulgarmos o torneio e analisarmos as melhores partidas à medida que se for desenrolando. Boa sorte.

Muito obrigado, em nome de toda a nossa equipa, pela atenção e pelo apoio.

Perfil:

Wang Yue ( 王玥; nascido a 31 de Março de 1987) tornou-se, em 2004, no 18º GM chinês com a idade de 17 anos. De Março a Dezembro de 2008, Wang Yue esteve 85 jogos consecutivos sem uma derrota, um feito histórico. Foi também o primeiro jogador chinês a entrar no top 10 do xadrez mundial, o que aconteceu em Janeiro de 2010. Foi o tabuleiro nº 1 da selecção olímpica chinesa que ganhou a medalha de ouro em 2014.
Wang é actualmente um estudante de “Estudos de Comunicação” na Faculdade de Artes Liberais da Universidade de Nankai em Tianjin. Fundou uma Escola e um clube com o seu amigo Li Chao, também Grande-Mestre, focada no ensino e prática do xadrez dirigidos principalmente às crianças.

De João Valle Roxo

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