Uma terra para ninguém

[dropcap style=’circle’]J[/dropcap]á não sei se foi em 2003 ou em 2004, mas lembro-me perfeitamente do cenário: uma espécie de estação de serviço na China, algures na província de Guangdong, um daqueles sítios em que se fazem paragens para esticar as pernas e fumar uns cigarros. Na altura ainda se fumavam cigarros alegremente e Edmund Ho era um Chefe do Executivo que gostava de conversar com os jornalistas sem os formalismos que hoje conhecemos. As estações de serviço e as pausas para os cigarros serviam para umas conversas que, sem cigarros, não fariam qualquer sentido.
Foi aí que ouvi falar, pela primeira vez, da necessidade de melhorar a qualidade de vida da população. Fazia parte dos objectivos do Governo de então mas, por esses dias, não conseguia perceber exactamente o alcance do desejo: Macau era aquele sossego em que havia gente que, não vivendo bem, também não vivia propriamente mal. Macau era aquele sossego em que tudo ficava a cinco minutos de distância, em que tudo era acessível. Macau era outra coisa que não isto que hoje é.
Os anos passaram e acabaram-se as paragens em estações de serviço na China para fumar cigarros e esticar as pernas. O Chefe que se seguiu não partilha da curiosidade do anterior, mas manteve o discurso da necessidade de melhorar a qualidade de vida das pessoas que estão em Macau (ou de parte delas). O discurso faz-me rir. Por razões agora completamente diferentes, não percebo o que se quer quando se fala em qualidade de vida. Não entendo o conceito que vai na cabeça de quem manda. Acredito que não serei a única.
A qualidade de vida, para a maior parte das pessoas – as que aqui vivem e as dos outros sítios também – passa pelas pequenas coisas. O que nos irrita e o que nos satisfaz não são as grandes questões políticas, as decisões de vulto, os anúncios espampanantes, as grandes negociatas, as tramóias de quem passa a vida em jogos de poder. O que nos irrita mesmo são as dificuldades do dia-a-dia, a dificuldade em estacionar o carro, a impossibilidade de apanhar um autocarro, a hora a mais que se demorou a chegar a casa – aquela hora que tanta falta faz porque, quando passa, já tudo é diferente.
Irritam-nos também os preços do supermercado, que não obedecem à inflação da China, os preços das casas, que não obedecem a qualquer regra de mercado. Irritam-nos ainda os serviços concessionados, lucrativos monopólios que chegam ao fim do ano com os bolsos cheios do que cobraram a clientes que andam ao engano, sempre ao engano, mas sem possibilidade de mudarem para qualquer coisa melhor.
O trânsito. Já se percebeu que não há grande volta a dar. Há anos que percebemos isso. O metro é obra que será motivo para uma expedição a Macau, que muito provavelmente não estarei por cá para a inauguração. Os autocarros são o que se sabe: sardinhas em lata às várias horas de ponta da cidade, a falta de civismo de muitos (mulheres com crianças ao colo, idosos e grávidas podem ter a sorte de um lugar sentado, ou não), ex-condutores de betoneiras que subiram na vida e agora são motoristas, aceleram nas rectas como se o povo fosse cimento, vai para a direita, vai para cima, vai para a esquerda e vem para baixo. Quem quiser que se agarre ao que houver para agarrar.
O estacionamento. Previsivelmente, esta semana os preços do parque privado onde guardo o carro todos os dias, para me dar a esse luxo imenso que consiste em ir trabalhar, subiram mais de 50 por cento, que esta malta precisa de dinheiro e não quis, de modo algum, ficar atrás da iniciativa governamental que tem como nobre objectivo libertar lugares de estacionamento. Uma semana de testes e a ideia não funcionou: sucede que há gente, boa gente, que precisa mesmo de se deslocar e não tem outra hipótese. As filas à porta do meu parque de estacionamento continuam a ser as mesmas. O tempo de espera também. Só a conta ao final do dia é que é bastante diferente. Para mim e para muita gente, em muitos outros parques de estacionamento.
As cabeças quadradas. A falta de ideias para resolver as pequenas coisas que nos irritam. Por altura da promessa de qualidade de vida de Edmund Ho, eu morava no NAPE e não tinha carro, porque não precisava dele – ainda havia táxis e autocarros. O NAPE era, há uma dúzia de anos, um sítio pacífico com meia dúzia de restaurantes, outros tantos bares, dois cafés muito simpáticos e um supermercado. Havia um ou outro karaoke de miúdos que, de vez em quando, se metiam em maus lençóis. Mas a zona era pacífica. Quem tinha carro estacionava na rua e os autocarros ainda se davam ao trabalho de apanhar passageiros nas paragens, porque tinham espaço para eles.
O NAPE mudou e vieram os casinos, as lojas de penhores, os karaokes com portas duvidosas em todas as esquinas. Como Macau é aquela cidade de permanentes contradições, no meio de toda esta confusão instalaram-se (ou já estavam instaladas) várias escolas, creches, uma universidade. E escritórios, negócios às claras e negócios por debaixo do tapete, lojas de vinhos caros e lojas de electrodomésticos, lojas de colchões, lojas de roupa manhosa.
Durante os anos de atribulada expansão demográfico-empresarial desta zona, que um dia se pretendeu nobre, não houve uma única alma nos Serviços para os Assuntos de Tráfego que se tivesse lembrado de encetar conversações com uma alma homóloga da Polícia de Segurança Pública para facilitar a vida aos pais que, diariamente, vão deixar e vão buscar os filhos à escola. Como não há lugar para estacionar nos parques públicos, nos parques privados e nos lugares com parquímetro, quem vai ao NAPE diariamente fazer o exercício de tirar a criança do carro e deixá-la na escola não tem outro remédio que não seja parar nas linhas amarelas das várias paralelas e transversais à avenida principal.
As soluções para este tipo de zonas foram há muito inventadas: abrem-se excepções para quem pára, à hora de entrada e de saída das escolas, em locais onde não é possível estacionar; destacam-se polícias que, em vez de terem como missão multar pais, ajudam na gestão do trânsito, na garantia de que as passadeiras são respeitadas. Facilita-se a vida a quem só está a tentar viver.
Mas por aqui é tudo diferente: a polícia gosta de passar multas a mulheres grávidas com filhos ao colo, no momento em que estão a preparar-se para entrarem nos carros estacionados em linhas amarelas e seguir viagem. Já se fosse à noite, o problema não se colocava: o lobby dos restaurantes e karaokes conseguiu abrir excepções nas linhas amarelas. A malta que bebe uns copos pode parar o carro; aos miúdos de dois anos é melhor dar um MacauPass e eles que se façam à vida, para aprenderem que não é fácil.
O que acontece hoje em dia no NAPE é apenas um exemplo do que se passa noutras zonas da cidade. Já que o conceito de qualidade de vida é algo que o Governo não consegue definir, para depois pôr em prática, que tenha em mente aquilo a que está obrigado: dar possibilidades às pessoas. A impossibilidade da normalidade mina qualquer ideia de vida.
Talvez um dia perceba onde queria chegar Edmund Ho.

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