Parto com dor

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]e boas intenções, dizem, está o inferno cheio, mas eu gosto de boas intenções. Para que o mundo mude, é preciso que alguém queira que as coisas aconteçam; melhor será se a intenção de evolução for boa. É por isso que não alinho no coro de quem condena com veemência as intenções de Alexis Tam para a área da Saúde, por serem demasiado ambiciosas ou anunciadas antes do tempo. São boas as intenções do secretário e há já alguma evolução, dizem, pelo menos ao nível estético, no plano funcional. É positivo que, num Governo que objectivamente não é alvo de avaliação popular, alguém avance com promessas para que se crie um compromisso.
Acontece que as boas intenções de Alexis Tam esbarram no tempo e no espaço que Macau não tem. O tempo foi perdido nos anos que se deixaram passar sem que houvesse qualquer preocupação de modernização, de ampliação dos serviços e de melhoria de resposta a uma população cada vez maior e também em crescente grau de exigência. Este desperdício de anos não é uma mera impressão – o erro foi assumido, ao vivo e a cores, por Lei Chin Ion, o homem que, nestes quase 16 anos da RAEM, ou foi director do hospital público ou foi, como ainda é, director dos Serviços de Saúde.
O espaço que Alexis Tam não tem não é de ordem física: é, digamos, de natureza tradicional ou, se preferirem, de cariz histórico, de matriz cultural, de características sociais profundamente enraizadas. A decisão vem de longe, mas mantém-se forte e foi recentemente reiterada: quem manda entende que o Hospital Kiang Wu, instituição privada dada à beneficência, deve ser apoiado financeiramente pelo Governo. Há vários modelos de transferência do erário da RAEM para o piedoso Kiang Wu, que tanto vai buscar dinheiro à Fundação Macau, como vai buscar ao orçamento do próprio hospital público.
Em terra de muito dinheiro, não me choca que se ajudem as beneméritas instituições – apesar de serem muito pouco caridosas as contas que o hospital privado de Macau cobra a quem passa lá umas noites. O que me indigna é que, à custa do espaço que o Kiang Wu foi conquistando – pelos tratamentos que dá e que não existem no São Januário, pelas instalações que tem e que faltam ao São Januário, pela formação que proporciona e que não há no São Januário –, se tenha ignorado a importância de um hospital público condigno.
Ao princípio, quando as coisas começaram a correr mal na saúde, eram meia dúzia de portugueses mal habituados que batiam o pé – vinham de longe, de um país que, apesar da falta de dinheiro, se pode gabar ainda hoje de um serviço público de excelência. Não é segredo para ninguém que, nalguns corredores, os portugueses – e alguns jornalistas nos quais me incluo – eram conhecidos por serem particularmente aborrecidos, por cometerem o imperdoável pecado da pergunta. Ainda não perderam o título.
Era assim ao princípio, mas deixou de ser só assim: porque a população de Macau passou a ter menos dinheiro para deixar em filantrópicas instituições prestadoras de cuidados de saúde, virou-se para o serviço público que, não sendo gratuito, é mais comedido na hora de apresentar a factura. As queixas – algumas injustificadas, muitas justificadas – começaram a crescer. E os jornalistas que não eram conhecidos por serem chatinhos juntaram-se ao grupo dos muito aborrecidos que fazem perguntas.
Esta semana, uma ouvinte do canal chinês da Rádio Macau aproveitou a presença do director dos Serviços de Saúde no programa de antena aberta da emissora para dar a voz e contar a sua história: teve um filho no São Januário e não correu bem. Deixaram-lhe placenta lá dentro. Teve um problema com a sutura. Teve de se submeter a uma intervenção cirúrgica para corrigir o que não correu bem. Teve um processo doloroso. Queixa-se de ter sido tratada com fracos modos por quem a atendeu. Teve um filho e ter um filho não foi a melhor coisa que lhe aconteceu.
Sei de fonte certa que esta mulher não é um caso único – e qualquer jornalista consegue, sem grande esforço e em meia dúzia de horas, redigir uma colectânea de problemas hospitalares na especialidade clínica que mais alegria deveria dar a quem entra no São Januário. Vistas as coisas, é das poucas salas onde se vai por não se estar doente – está-se ali porque se está a gerar vida, esse acontecimento que deveria ser festivo, bonito, indolor e inesquecivelmente bom. É um desejo mundial: não importa o contexto étnico ou cultural das mulheres que ali estão.
Sem espaço para inverter desejos maiores do que o dele, resta a Alexis Tam pegar no pouco que tem (porque o São Januário e os centros de saúde, sendo muito, são pouco) e, sem pretensões de querer vencer o imbatível, apostar num projecto modesto, mas de excelência, ao melhorá-lo naquilo que faz mesmo falta: melhores equipamentos, melhores tratamentos, pessoas mais bem formadas, pessoas com mais tempo para se dedicarem às pessoas que ali vão parar, gestores que saibam mesmo o que andam a fazer e, já agora, garantir que as mensagens que se passam cá para fora são de uma irrepreensível honestidade. Para que a história da mulher que ligou para a rádio e todas as outras parecidas sejam a excepção e não a regra. Para que as promessas sejam mais do que um compromisso.

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