h | Artes, Letras e Ideias MancheteAna Luísa Amaral, escritora e docente de Literatura Andreia Sofia Silva - 8 Out 20158 Out 2015 O ano de 2015 está a revelar-se um ano produtivo para a carreira de Ana Luísa Amaral como poetisa, mas sobretudo como escritora. A editora Oxbow Press vai publicar uma antologia dos seus poemas em Inglaterra, enquanto que a editora europeia Peter Lang está a preparar um livro de ensaios sobre a sua obra, a sair este ano ou em 2016. A autora de “Minha Senhora de Quê”, o seu primeiro livro, continua a não assumir nada na sua carreira literária e a considerar as palavras que escreve como um “destino” [dropcap style=’circle’]P[/dropcap]ublicou, aos 33 anos, o seu primeiro livro, “Minha Senhora de Quê”. Muitos livros e palavras depois, que senhora é hoje? Uma pessoa diferente, claro, até porque 25 anos se passaram… Gosto mais de “pessoa” do que de “senhora” (aliás, esse “minha senhora” foi sempre irónico). Diria, até, que sou, sobretudo, uma mulher diferente. Sou uma mulher com uma linguagem que necessariamente mudou, com a passagem dos anos e o acréscimo de experiências, com a vida, com o mundo. Mas sou, todavia, estruturalmente, semelhante ao que era então, nesse ano de 1990, com semelhantes preocupações éticas e poéticas. Talvez a grande diferença é que hoje tenho menos medos. Se tivesse de escrever o mesmo livro actualmente, como o faria? Não sei, sinceramente. O tempo do livro foi aquele tempo, não este. Este é o tempo de livros como “Escuro”, ou “Ara”, ou “E Todavia”. Cada livro tem o seu tempo. Talvez por isso, quando reúno os livros em antologias (já foram duas, “Poesia Reunida – 1990-2010”, de 2010, e “Inversos – Poesia 1990-2015” e a próxima, que surgirá para o ano, pela Assírio & Alvim, irá chamar-se “Em Suma”), nunca mudo os poemas, nunca os reescrevo. Nunca escreveria novamente esse livro – nem nenhum dos outros que se seguiram. [quote_box_left]“A minha relação com as palavras foi sempre de amor à mistura com o que sinto quase como uma espécie de necessidade, a ananké grega, ou seja, quase um destino”[/quote_box_left] Foi em 2013 que escreveu “Ara”, o seu primeiro romance. Sentiu que tinha chegado a altura de escrever prosa? Como foi o processo de criação dessa história? Os capítulos desse romance foram sendo escritos ao longo dos anos, durante bastante tempo. Não foi, portanto, um romance escrito de uma forma cronológica, nem com aquela dedicação de escrita de que geralmente falam os romancistas. Talvez essa seja uma explicação para o facto de o livro abrir assim: “Mas as coisas não giram ao nosso compasso. Eu não sou romancista. Se fosse romancista, dividia-me em nomes de ficção e disso não sou capaz.” Este não é, pois, um romance no sentido mais tradicional do termo e a sua escrita foi-me muito rente à escrita da poesia. Assim, mais do que sentir que tinha chegado a altura de escrever prosa, o que senti foi que tinha chegado a altura de dar forma àquele “romance” e de publicar aquele livro. Numa entrevista que deu há alguns anos, disse que sentia falta de ter tempo, por sentir dificuldades em conciliar a vida pessoal com a escrita e as aulas na faculdade. Ainda sente isso? Sim, sinto isso ainda hoje. Talvez menos, do ponto de vista familiar, porque quando dei essa entrevista, a minha filha era ainda pequena, e agora tem 30 anos. Mas continua a ser difícil conciliar a minha vida profissional (os projectos que coordeno, as teses que oriento, os contínuos pedidos que recebo para avaliações) com a escrita – que é sempre algo para mim muito mais “puro”. Continua a sentir-se mais docente do que escritora, como disse numa entrevista? Porque é que não se assume ao contrário? Penso que nunca disse exactamente isso, ou se disse, disse mal, e o que queria era dizer que a minha profissão é ser docente e investigadora. Quanto à escrita, sou “amadora”, no sentido de que fala Clarice Lispector, ou seja, aquela que ama a palavra e a escrita. E não assumo nada: escrevo porque preciso de escrever, como preciso de respirar. É-me tão essencial como a vida. Por vezes, é mais do que a vida… A sua relação com as palavras tem vindo a mudar ao longo dos tempos? Como a descreve? A minha relação com as palavras foi sempre de amor à mistura com o que sinto quase como uma espécie de necessidade, a ananké grega, ou seja, quase um destino. O que é algo estranho para alguém que, como eu, duvida do determinismo… O que é certo é que tenho um poema que começa assim “Desejava esquecer, mas elas não me deixam, / chegam com seu tear e sua mãe cruel, / e sobre mim ensaiam um cansaço que há séculos / lhes tem sido alimento”. O poema chama-se “Os teares de memória: Mnémosine e suas filhas” e fala da memória e do que sinto como a inevitabilidade da escrita. E devo dizer-lhe que sempre assim foi. Como olha para o lançamento deste livro cheio de ensaios sobre a sua obra, que vai sair este ano? O que sente perante estas retrospectivas sobre as palavras já escritas? Uma ponta de nostalgia, ou sobretudo uma auto-reflexão? Sinto alegria, sinto alguma nostalgia, claro, porque isto significa que eu escrevi bastante e que, portanto, o tempo passou. Mas sinto sobretudo uma grande alegria. E também gratidão por este livro estar a ser preparado e pelo reconhecimento. E ainda algum orgulho pelos nomes das pessoas que escreveram sobre a minha obra e que lá estão, nesse livro. Mais não sei dizer, acho que da minha obra falarão os ensaios. Além disso, acabo de saber que vai sair também, pela Oxbow Press, uma antologia da minha poesia, traduzida por Margaret Jull Costa. Essa é uma grande alegria. Como surgiu esse projecto? Esse projecto surgiu inicialmente pela mão de Teresa Louro, que esteve na Universidade de Londres a fazer pesquisa sobre a minha poesia, acabando por escrever um belo ensaio sobre o meu livro “A Génese do Amor”. Depois, a ela juntou-se Claire Williams, da Universidade de Oxford, a primeira pessoa a escrever um ensaio que explora a relação entre mãe e filha na minha poesia (algo que ninguém tinha feito e que é, portanto, profundamente original). O ensaio chama-se “Educating Rita” (o nome da minha filha…). São elas as organizadoras desse volume. Todos os anos se celebra o Dia Internacional da Mulher. Os discursos e as necessidades continuam a ser as mesmas, em prol da igualdade salarial e de oportunidades. É preciso mudar algo a este nível? As vozes que pedem essas melhorias devem mudar de estratégia, para que exista, de facto, uma mudança? Amartya Sen diz que para haver justiça não chega haver voto, é preciso haver voz. Muitas, muitas mulheres, mesmo tendo direito ao voto, não têm ainda voz. Quando deixar de se celebrar esse dia, chegaremos a um ponto de viragem muito importante, em que as diferenças passarão a ser a indiferença. Porque ninguém celebra O Dia Internacional do Homem (aliás, mesmo esta palavra, “Homem”, pareceria logo que tinha a ver com a espécie humana). Há muito a fazer ainda, sim. Fazem falta mais mulheres na literatura portuguesa e mundial? Tanto na poesia, como na prosa? Pois claro que sim. Mas cabe às mulheres publicarem mais e às editoras divulgá-las melhor. Que autores contemporâneos costuma ler? Maria Velho da Costa, Nuno Júdice, Lídia Jorge, Hélia Correia, Jane Smiley, Mário de Carvalho… E depois, os clássicos, que não me canso de reler: Camões, Pessoa, Sá-Carneiro, Emily Dickinson, William Blake, William Shakespeare, Dostoievsky… Depois da morte de nomes como Manuel António Pina, Mário Cesariny ou António Ramos Rosa, sem esquecer Saramago, podemos falar de uma nova fase da literatura portuguesa, com novas formas de escrever? Sobretudo, de uma boa fase da literatura em Português? A literatura portuguesa sempre foi riquíssima, em especial a poesia. Não creio que poetas como Sophia [de Mello Breyner], Fiama [Hasse de Pais Brandão], ou Jorge de Sena tivessem eclipsado os seus contemporâneos. Portanto, depois desses extraordinários poetas que morreram, houve outros poetas. E haverá sempre mais poetas… Na qualidade de docente do curso de Literatura Inglesa e Americana na Universidade do Porto, que análise faz aos alunos que hoje em dia escolhem essa área? São alunos que escrevem, que debatem ideias? Nem sempre, infelizmente. Os melhores alunos que tenho tido são os que escolhem Literatura Comparada. Fazem muito bem, na minha opinião: a literatura não conhece fronteiras, nem lealdades. A literatura é múltipla, sendo uma. É necessário fazer alterações aos cursos de Literatura actualmente leccionados em Portugal? Julgo que uma das coisas mais importantes (mas isso tem a ver com algo mais amplo do que os cursos de Literatura propriamente ditos) seria valorizar as Humanidades e a Literatura, em particular. Passar a mensagem de que a Economia, ou a Engenharia, ou a Tecnologia são mais importantes (e rentáveis) do que as palavras (neste caso, a palavra poética, no sentido lato do termo) é um enorme erro. Porque, sendo aparentemente menos útil, a literatura é o mais poderoso veículo humano que possuímos para simultaneamente comunicar, pensar e imaginar. E a imaginação é essencial, o simbólico é essencial: é aquilo que nos torna humanos. Enfraquecer a cultura é enfraquecer a memória e enfraquecer a memória é enfraquecer os povos. A crise económica em Portugal afastou ainda mais as pessoas da leitura, sobretudo os jovens? Como mudar esse paradigma? Esse afastamento é relativo. Porque há os blogues, todo o suporte informático a que os jovens cada vez recorrem mais. O livro, sim, como objecto, esse tem sofrido bastante, porque a capacidade de compra está cada vez mais reduzida e as pessoas fazem uma selecção entre o que consideram ser o essencial e o que pode ser visto como o supérfluo, ou o adicional. E o Estado, na forma de escola pública e de bibliotecas, embora tenhamos uma excelente rede de bibliotecas, também não fomenta a leitura. Mas nunca no meu país se assistiu a tantas leituras de poesia em cafés, pequenos bares, sítios mais alternativos. Como se a arte fosse uma tábua de salvação para estes tempos tão cruéis, em que os estados e os povos deixaram de ter importância, ficando à mercê das indústrias financeiras. A arte é impossível de conter, de controlar, como um rio: se encontrar obstáculos, correrá noutra direcção, procurará outros leitos. Como escritora de contos infantis, como olha para a política da leitura nas escolas? É cada vez mais difícil pôr os miúdos a ler, com as novas tecnologias? As tecnologias, ou tudo o que o ser humano inventou, podem sempre ser usadas de uma forma maravilhosa, tal como podem ser usadas de forma danosa. Mas, quando são usadas de uma maneira engenhosa e delicada, são maravilhosas. Dou um exemplo bem simples. Tenho um livro que se chama “Como Tu”, que tem um CD. Os poemas desse livro são lidos por dois actores (Pedro Lamares e Rute Pimenta), acompanhados ao piano por Álvaro Teixeira Lopes, tocando música de António Pinho Vargas. Quando vou a escolas, ponho muitas vezes esse CD e as crianças adoram. O mesmo se passa com um outro livro, “A história da Aranha Leopoldina”, que tem também um CD. Mas já me aconteceu falar para crianças surdas. Aí, a imagem e as palavras projectadas num ecrã gigante (porque, na maior parte das vezes, no início do encontro, eles não têm o livro) são fundamentais. Sendo este um jornal de Língua Portuguesa em Macau, perguntava-lhe se já visitou o território, ou a China. Já fui a Macau, sim. Em 2006, por ocasião dos I Jogos da Lusofonia. Sobre a China, como vê o crescimento do país a presença crescente em Portugal? Sem esquecer a literatura chinesa: vai, cada vez mais, dominar o panorama mundial das letras? Não sei, mas imagino que sim. Em primeiro lugar, sabemos hoje que a China tem um fortíssimo poder económico. Depois, no que se refere à poesia, estive agora em Setembro no 2º Festival de Poesia de Atenas e conheci um poeta chinês absolutamente extraordinário: Ouyang Jianghe. Fiquei fascinada com a poesia dele. E pensei em como realmente sabemos tão pouco sobre o “outro”. Em quão pouco eu sei…