Santo Ofício

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]draconismo severo tem sido um hábito mormente gentil numa terra morna com mecanismos impiedosos. Mecanicamente verboso com tendências mórbidas a extrapolar a sua escala de acção, numa continuidade diluída em outras coisas, como o dislate, a delação, o disfarce e a corrupção, muitas vezes alienado, pois nada se trata com a precisão dos casos simples. Não é fácil portanto o desapego a um «Santo Ofício» umbilical, de teor complexo e bizarramente amarfanhado em brumas. A repressão inquisitorial deu azo a um recalcamento dos afectos que levam a um siso, também ele difuso… sisando muito a propósito de nada, numa esteira de saúde pública doente de todo na sua invenção dos males. Recuemos ao século dezoito e ao disparate guardado nas Arcádias, como a vida de Filipe Elísio, o poeta, pois foi a sua mãe que o traiu num processo quase macabro.
Filipe Elísio foi um maravilhoso poeta helenístico que, ao serem-lhe atribuídas afirmações heréticas e a leitura de livros proibidos, lhe fora movido um processo duro, em que o poeta ao encetar a fuga não mais viria ao país. Foi amigo de Lamartine e, após o indulto de D.Maria I, acabou por não regressar devido à maquinação dos seus inimigos que numa irracionalidade ilimitada o haviam de perseguir até ao fim. Por isso, e quando escutamos agora a essência das coisas, nós ainda as vemos como reflexos que trespassam o fino asfalto da consciência; sempre a mesma mordaça, aquela forma de reduzir o outro ao nível de um perseguido, persecutoriamente e visceralmente inimigos nem se sabe bem de quê, num local pequeno cujo alongamento pode muito bem ferir de morte um outro e cujo conteúdo de zelo passa indiscriminadamente por punir.
Filipe Elísio está publicado no «Parnaso Lusitano» da Arte Poética Portuguesa . Grande trabalhador da língua que o tempo pareceu esquecer, não sendo redimido, como tantos outros, pelo erro da expulsão. De uma forma mais ténue, estamos mais ou menos nestes beirais, a sociedade portuguesa filtra-se quase sempre nas elites sem expressividade para ser representativa do que quer que seja. Por outro lado, são eles que ainda firmam os “guetos”, os esquecimentos estratégicos por onde sempre passará a sua influência de uma hidra sem rosto.
Não é por isso, na escala da Paz, aquele lugar seguro que almejam as gentes, bem pelo contrário: há dramas inconfessáveis em cada beiral das vidas, que só não são confessáveis porque de nada serve, não se vê o movimento para a interajuda como resolução social, é preciso saber isto e calar. A escola do fascismo mais não foi que o prolongamento, não sei se com mães delatoras ou não mas, pelo menos, com familiares muito próximos. O imaginário do fantástico talvez até seja limitado para entender tais psiques pois que qualquer metamorfose é sem dúvida mais simples que esta chaga aberta na mente e “modus-vivendi” de um Povo.

Por três homens que vi dignos de estima, vi mil malvados Judas.
Avarentos, filautes, vis sejanos.
Cavernas de calúnia, sem pesar me despeço; e, se o previra
Rejeitar entrar na orbe.

Um excerto do seu epitáfio

Todos os dias há processos e proibições, como seja a última de não se poder ser fotografado ao lado de alguém sem o seu consentimento para passar a publicado, das mães que são presas porque fogem com os filhos num enquadramento de fragilidade social de arrepiar, de não se ousar pronunciar o nome de um adversário, de coisas absolutamente estarrecedoras e impróprias para uma mente sã. E uma sociedade civilizada. Voltou o gene obscurantista como se dormisse à espera de um acordar tão óbvio quanto impossível de combater. Direi que num clima destes, em que cada um se espreita pelas piores razões, apetece nunca mais vir, caso se vá para um outro lado, impelido por um tentáculo sem freio.
Questionar estes assuntos é tão tabu quanto inimaginável, convém sempre dar a impressão que o futuro é agora, e que se ultimam os preparos de uma Humanidade melhorada. Mas não nos enganemos: ela é apenas o lado que ressurge do tempo das perseguições. A Justiça é quase plenária, está cada vez mais ao serviço de coisas morais face ao conteúdo da matéria, as pessoas agora podem aventurar-se na prática do abominável.
Quem não tem para onde ir, sentindo-se a mais, vê melhor um destino ameaçador, uma mórbida onda de desproteção maciça e de negrume. Os grandes ideais ainda foram no tempo em que se comiam bifes e as barbas suavam nos Verões. Não há tempo a perder para começar a dizer o óbvio, com o risco de nada mais se poder dizer do que aquilo que não é óbvio e nos deixarão. E com toda esta imensa nuvem de chumbo lendária nos queremos entender nos interstícios destes sinais.
Com o tempo aprendemos que o medo é uma ausência de generosidade. E que não a ter, contribui para uma escalada onde ninguém fica a salvo, quase como um excesso de zelo movediço que faz asfixiar o seu autor. Olhamos e reparamos que há sombras… sombras e com elas espectros invencíveis.
Agora é altura de rasgar os autos porque a Fé se busca em outras paragens.
Sem mais nada que a incerteza, a diferença pode constituir de novo a culpa formada para se actuar, e, até, nos fazer migrantes engalanados a salto em buscas de novas paragens.

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