Ficam dois e uma parte

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]or e cão para pernoitar. Como uma senha cúmplice. Disse ao monge que me abre a porta pesada a ranger nos gonzos, com aquela idade indefinida que lhe imaginei, e que me parece um conhecido de sempre, tantos os emails trocados. Estendo-lhe a mão e ele, olhando para mim e para trás de mim, surpreende-me com três beijos nas faces. Muito fraternais, muito firmes muito urbanos aqui neste confim que tanto me obrigou a trepar. Exausta. Pedi um quarto de casal com uma caminha extra desmontável, lembro-lhe. Ele riu, ligeiramente trocista. Entendi mais tarde que aquilo que parecia ironia, nele, raramente era outra coisa senão ternura. Abriu a porta do quarto que eu esperava e disse que teríamos que nos revezar, ou tirar a cama estreita à sorte todas as noites.
Vim pelo claustro. Mas também pelas montanhas que aqui bem perto têm a verticalidade lisa de lâminas, e pelas árvores que densamente bordejavam o caminho até aqui acima. E também pelas mesas compridas de madeira que percorrem o refeitório em que eles se sentam silenciosos em frente a malgas que eles mesmos fazem, de um minimalismo essencial como só no Japão e por outras razões que tradicionalmente talvez se cruzem com as que subjazem a esta estética. E pela cama sóbria, elementar e nua que habita os quartos de todos e também dos visitantes como eu. Não vou dizer o lugar, que conheci há muito num artigo de jornal, nem vou descrever a aventura quase penosa que me trouxe aqui. Eles merecem essa descrição e merecem ser conhecidos mas ficar na memória só para quando algo de especial passa. Eu vim pelo claustro e pelo silêncio radical a que eles me destinam de que precisava usufruir como um banho purificador. Não vou detalhar-me na candidatura quase desesperante nos termos. Entendo a auto-protecção necessária e por fim vim.
Está frio aqui. Mais do que imaginei, mas vim prevenida e sem vaidades. Tudo aqui é reduzido ao elementar. Vim pelos claustros, já o disse, e pelo silêncio. E vim para alimentar o meu desgosto em paz. Todos dizem isso. Diz-me de olhar azul e transparente num sorriso, o monje, que é a ponte entre mim e as regras do lugar. Com aquela calma contemplativa e a benevolência que se espera. Respondi que é natural os seres humanos terem em comum essa necessidade. Aí o olhar dele, mas não os lábios, sorriu ainda mais, e acrescentou que raramente depois e de facto se verifica ser essa a verdadeira necessidade, mas sim a de derramar a alma, nos ouvidos de quem puder acolhê-la. E aqui, só ele se destinou a ter essa função, talvez por também ter menos vocação para o silêncio. Talvez porque o mosteiro se deixa usar mesmo para sua própria viabilidade, ou talvez porque dedicando-se aos outros alcança melhor as trilhas do seu caminho. Lancei-lhe estas hipóteses e finalmente sorriu com o rosto todo. Peut-être… E quanto a si, veremos… acrescentou e sorriu de novo. Julguei ver de novo uma pontinha de ironia benévola. Garanti-lhe que não o incomodaria muitas vezes saindo das minhas primeiras intenções e de facto poucas vezes o vi, e sempre pelo acaso da sua preocupação. E sempre sorriu como se contente da minha persistência. Mas nos primeiros dias, reparei que era ele que de algum modo se propunha ao diálogo, como se quisesse inteligente e generoso, deixar-me confortável para encetar o meu silêncio das despedidas só se verdadeiramente fosse aquilo de que necessito, ou para estar ali a acompanhar-me, sem me dar a impressão de insucesso, poupando-me à eventual frustração, já que era ele a vir ao meu encontro. Porque ele sabe que muitos dos visitantes chegam imperfeitos, e ser generoso é não os confrontar com a imperfeição.
Poucas vezes ou nenhuma, senti tanto o reflexo atento de alguém, face ao intuído. Até o fumo negociei com ele. O fumo e o feminino, assunto este, tão ou mais complexo e igualmente fora dos limites estritos da ordem. Mesmo nos visitantes. Dura negociação e duras conversações. E também aí, fui surpreendida pela profunda generosidade que na maioria das vezes não se encontra na ortodoxia destas ordens. Garanti-lhe que, nas camisas brancas que levaria, recordação dos vários homens da minha família, e no resto do meu equipamento habitual, pouco vislumbrariam desse feminino proibido ali.
O quarto, e a cama reduzidos à essência, como disse. Belos e legítimos. Uma assombrosa janela sobre um pedaço do vale meio confundido pelo muito arvoredo. Da cama, tudo o que é necessário para ser uma boa cama. Os lençóis de um linho quase áspero e amarelado, um colchão firme. Uma almofada rija e alta e um único cobertor de lã, num castanho muito escuro, que na primeira noite percebi insuficiente para mim, e com uma única risca cinzenta a delimitá-lo de um só lado, o que me intrigou. Ainda persisti duas noites no frio irremediável até que cedi à incontornável necessidade de dormir algumas horas e apelei por mais dois. Iguais em tudo e que, somados, eram de um enorme conforto, então. E o meu cão ao lado da cama sempre. Sem um tapete mas com o pêlo comprido a fazer parecer que esteve sempre bem.
A mesma estética minimalista ou essencialista e depurada, constatei nos utensílios à refeição, toda a cerâmica feita ali mesmo por eles, e uma parte dela comercializada por necessidade, embora com tristeza. Gostariam de não ter que lidar com dinheiro e de pouco precisam. Mas a variedade subtil de formas e tons maioritariamente variando entre os azuis e os verdes aquosos, fizeram-me pensar que as cores quentes não são para eles um anseio da alma. Nas formas, perfeitas até ao desaparecimento de vestígios artesanais, via-se serem a procura e o apuro progressivo e perfeccionista. Com variações por vezes para pequenas assimetrias. Uma cerâmica fina, argila da região, a lembrar oriente. E os talheres de pau. Basicamente apenas colheres e as facas do pão. Mesmo as refeições se pautam pelo mesmo rigor. Tudo produzido por eles na horta primorosa. Uma única refeição sempre constituída por uma sopa espessa variada e abundante. Com alguma carne, muitos legumes e uma grossa fatia de pão. E ao dejejum, sempre o mesmo pão, com queijo fresco ou mel, ou ambas as coisas e sempre. Como são belíssimos aqueles pães enormes grosseiros, toscos, cheirosos e ainda quentes. Tudo intenso de paladar e curiosamente em quantidade saciante. O que me pareceu bem, não pensei nunca que o sacrifício e o maltratar do corpo fossem caminho necessário para provar o que quer que fosse. Eles têm uma vida útil, oferecem o silêncio e a fé. Para quê adicionar sofrimento…
Rumei um pouco mais a norte, para chegar aqui. Passei duas fronteiras. Penso que uma é a da dor e outra, a do lugar da dor. Penso que uma é a da dor e outra, a da inércia. Mas só por uma delas ponho as mãos no lume. Quanto à dor, não se pode deixá-la escorrer no espaço normal de sempre e para o sempre de todos os dias, sob pena de ela impregnar indelevelmente o habitáculo das paredes que por reflexo voltarão a macular-me mais e mais. A dor precisa do seu cenário próprio. Acolhedor, digno, acalentador mas longínquo. E de ficar lá, tentando que não nos acompanhe no regresso. Mas a dor, como um cão. Não se deixa abandonar facilmente e por vezes percorre os quilómetros de uma vida e até à exaustão, atrás do dono.
Caminhar. Foi para o que vim. Sem o olhar se perder em nada ou prender a nada. Nada querer e nada querer ver. Uma sucessão de minutos e horas e dias, cheios de sinais exteriores à dor, em que as únicas marcas que se imprimem são aquelas coisas – tantas – que a fazem lembrar. E todos esses signos de que se rejeita a leitura, todos esses conjuntos de formas significantes, todas as cores, os movimentos e os sons, nada dizendo que se queira ouvir, funcionam a longo prazo como uma superfície abrasiva. Uma pedra-pomes que desgasta, refina e alisa o sentir. Mais ainda. Mas não se ama a dor. Como não se ama a mágoa. Só que uma e outra, a ter uma representação possível, é literalmente o rosto do objecto da dor. Da mágoa. E como tal, é paradoxal o desejo e temor de a perder. Porque com uma e outra, se vai ele também. Para o lugar do nunca mais. Maior o rigor e diria que se ama a tristeza e a dor, mas não se quer ficar nela ou com ela para sempre. E não por elas em si mas pela memória registada a ferro e fogo nelas. É só um divórcio triste. E que se deve encetar com a delicadeza e o tempo de fazer bem as partilhas.
Sim, eu trouxe o meu cão. E ao meu cão dei um nome feminino. Não sei bem porquê, talvez para ser forte. Tal como chamei Feliz ao gato para enganar a sorte.
Não o deixei abandonado nem vim a fugir dele, e com ele, desesperado, a correr atrás do comboio tentando não me perder o rasto. O meu animal querido. E com ele passei os dias. Colado a mim. A caminhar em torno do claustro até à tontura. Tentando progressivamente andar mais devagar e assim abrandar o ritmo cardíaco e as guinadas da dor. E ele, que foi lentamente conhecendo o ritual diário e a obsessão do percurso, passou a, uma vez por outra, esperar-me deitado ou sentado no ponto qualquer do caminho, seguindo-me depois a partir dali. Ou não. Aleatoriamente primeiro, e a pouco e pouco, mais espaçadamente. Suponho que se resignava a ficar, tal como eu aprendia a deixá-lo para trás. De início custou-me. Da primeira vez que parou sem me seguir, senti um travo amargo de desapontamento. Mas quase sempre não se afastava muito das minhas pernas. Suponho que queria dizer que estava lá para mim, enquanto necessário, mas sabia que não era para sempre e que teríamos que nos despedir com desgosto no final da estadia. Ele sabe, não sei como, que o vou deixar ali. Não abandonado, mas entregue a quem tratará bem dele. E que encontrará ali a sua última morada, num sítio belo. E com uma pequena pedra com uma frase minha de carinho. E eu sabia que ele não iria seguir-me na abalada porque entendia. Que tinha que ser assim. E que eu não iria esquecer nunca. E ele também não. Iria farejar de vez em quando pequenos pontos nas pedras daquele chão, onde talvez persistisse um registo ténue de lágrimas.
E depois, vou ter para sempre saudades do meu cão. Hoje eu sei que este e outros sentimentos são para sempre. Mas o esquecimento recobre as saudades como recobre um amor. E só quando umas e outros vêm à memória, de forma aguda e cortante, se entende que estão lá e sempre estiveram. Num recanto escuro e esconso dos bastidores. Para sempre. Ou então, se a memória for generosa como o monge que conheci aqui, para nunca mais. Mas ele, por aqui, não vai comer pão por muito tempo. Carrega uma idade inverosímil para um cão.
E um dia, não muito longe, virá uma carta, simples e delicada – eu sei – com uma fotografia do lugar em que ficou. Tratei de tudo com o irmão. Perguntei-lhe se me enviaria um email, porque há toda uma logística que mesmo aqui já se trata desse modo. E ele, sem aquele sorriso habitual e só dos olhos, neste caso, disse que as coisas importantes se escrevem em papel. Sim. Com invisíveis dedadas e impressões deixadas pela subtil gordura das mãos, o ritmo da escolha das palavras certas em modo e número. As dobras no papel, a espessura, a dança da caligrafia o rasgar do envelope. Ou no silêncio do ar. Como o contrato de silêncio – perguntei. Sim, disse.
Fiz alguns desenhos do claustro e da capela. Quando fiz menção de lhos deixar, foi rigoroso na recusa. Disse: leve-os para suporte de memória. Nós ficamos com o melhor de si. (A dor?) Para se lembrar de como ela ficou bem entregue. O seu cão.
Amanheceu e levanto-me de imediato com os primeiros raios. A experiência diz-me que acordada na cama sou pasto fácil para pensamentos devoradores. Preciso de caminhar muito ainda e aproxima-se o tempo de voltar. E das despedidas. Amanhã.
A porta fecha-se entre mim e o irmão dos olhos sorridentes, sérios no momento. No último instante já não é ele mas um outro diferente e dos que nunca quebraram o silêncio devido. Quase duvido do que vejo, tão fugaz foi o momento. E de tudo. Enceto a descida. O passo rápido e embalado porque a descer todos os santos ajudam. E do que não posso duvidar, é de que vou mais leve. Sem eles. Mas não menos triste. Ficam dois, e uma parte. O combinado. Dois e uma parte.

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