China

Por Henry Miller

Mesmo em menino, o nome China evocava em mim estranhas sensações. Significava tudo quanto era vasto, maravilhoso, mágico e incompreensível. Dizer China era virar as coisas de cabeça para baixo. Como é maravilhoso que esse mesmo nome China desperte no velho que está a escrever estas palavras os mesmos estranhos e incríveis pensamentos e sentimentos.

Uma das lembranças especiais que eu tenho da China é que ela esteve à frente do mundo em tudo. Seja em cozinha, cerâmica, pintura, teatro, arquitectura ou literatura, a China sempre foi a primeira. Impressionante e absurda ilustração disso é o facto de no Japão de hoje, segundo me contaram, os melhores restaurantes serem chineses.

Só há uma arte em que para mim os chineses nunca se desenvolveram: a música. Para meus ouvidos ocidentais, a música chinesa tem um som horroroso. (Contudo, quando vivia em Paris, um viajante que regressava deixou-me uma colecção de discos chineses. Depois de algum tempo, acostumei-me um pouco àquela música esquisita, mas nunca fiquei apaixonado por ela.) Talvez eu esteja errado, mas duvido que a China já tenha produzido um Beethoven, um Bach, um Mozart, um Debussy ou um Schumann.

Recentemente, lendo uma biografia de Gengis Cã, fiquei surpreso ao descobrir que o seu exército penetrara a muralha da China (no século XI) exactamente como os alemães circundaram a Linha Maginot. O que talvez pareça incrível aos chineses de hoje é que, de acordo com alguns eruditos, a grande Muralha foi construída em dois ou três dias! Todo homem, mulher e criança foram postos a trabalhar, de acordo com o relato.

Ouvi um dia uma história igualmente espantosa na sala egípcia do Louvre. O francês que me levou lá para ver o forro do templo de Denderah apontou para o zodíaco sobre nossas cabeças, o qual, disse ele, indicava que a história egípcia datava de 40 000 anos e não de cinco mil, como geralmente nos contam. Nós do mundo ocidental somos muito novos, meros bebés em comparação com os hindus, chineses e egípcios, para mencionar apenas alguns povos. E, com nossa juventude, vão as nossas ignorância, estupidez e arrogância. Pior ainda, a nossa intolerância, a nossa incapacidade até mesmo para tentar compreender os modos de outros povos.

Nós, nos Estados Unidos, somos talvez os piores pecadores. Pensem, por exemplo, que não foram nossos estadistas que conseguiram abrir a porta da China, mas um punhado de jovens e entusiásticos jogadores de pingue-pongue!

Quando me disseram pela primeira vez que eu poderia escrever uma matéria para uma revista chinesa — sobre o assunto que eu escolhesse — fiquei virtualmente sem fala. Depois senti-me aterrorizado. Mas finalmente o que me fez voltar a mim foi a lembrança de que aquilo que eu mais amava nos chineses era humanidade. O ditado romano aplica-se aos chineses ainda mais do que os romanos: “Nada humano está abaixo de mim.” Essa qualidade humana combinada com um belo senso de humor é o atributo salvador de um grande povo. Eu devia também acrescentar a capacidade de persistir, manter-se firme em qualquer circunstância. No famoso livro Siddartha, Hermann Hesse faz seu herói dizer: “Eu sou capaz de pensar, sou capaz de esperar e sou capaz de passar sem.” Para mim essas qualidades tornam um homem invencível, especialmente “esperar e passar sem”. Os Estados Unidos não conhecem nem uma nem outra. Talvez seja por isso que com 200 anos de idade já mostram sinais de estar a cair aos pedaços.

Quando vivi em Paris (1930-1940), meu amigo Lawrence Durrell apelidou-me de “homem com alicerce chinês”. Nunca recebi maior cumprimento. Penso sempre que é possível eu ter sangue oriental em minhas veias. Com isso, quero dizer mongol ou chinês. Muitas pessoas, quando se encontram comigo pela primeira vez, perguntam se eu não tenho sangue asiático. Isso sempre me agrada imensamente. Nunca quis ser tomado como descendente dos alemães, como sou. Mesmo nos meus escritos, noto que tenho afinidade com os chineses. Eu digo o que é, o que foi, o que está acontecendo. Não me entrego a longas análises psicológicas. Penso que o comportamento do personagem deve falar por si mesmo.

E, no entanto, o escritor que eu mais admiro é o russo Dostoievski. Certamente, ninguém poderia estar mais longe dos chineses do que Dostoievski. Pergunto a mim mesmo como será que os chineses consideram a sua obra. Será ele amado ou evitado? Para mim, sem Dostoievski haveria um fundo buraco negro na literatura mundial. A perda de Shakespeare, que também deve parecer um homem selvagem para os chineses, não seria tão grande quanto a de Dostoievski.

É estranho que eu nunca tenha visto os países que mais desejava visitar: Índia, China, Tibete, Japão, Islândia. Mas vivi com eles na minha mente. Uma vez tentei persuadir o editor de uma revista britânica a deixar-me fazer uma viagem a Lhassa, Timbuctu e Meca, sem escalas intermediárias. Mas não tive sorte. Todas as três cidades parecem lugares misteriosos e vivem em minha imaginação.

Tenho consciência de que em toda esta matéria eu não fiz distinção entre a República Popular da China e Formosa (República da China). Eu não estou interessado em ideologias ou política. Acho que pessoas são pessoas em toda parte, mesmo na região mais negra da África. Quando penso na China, penso nos chineses como um povo, não nas coisas que os dividem.

Os Estados Unidos tentam dar ao mundo uma imagem de nação unificada, “una e indivisível”. Nada poderia estar mais longe da verdade. Nós somos um povo dilacerado por conflitos, dividido de muitas maneiras e não apenas regionalmente. A nossa população contém algumas das pessoas mais pobres e mais abandonadas do mundo. Provavelmente contém também as pessoas mais ricas de qualquer país do mundo. Há preconceito de raça em alto grau e desumanidade para com o homem mesmo entre os caucasianos dominantes. Como sugeri antes, os Estados Unidos estão-se a enterrar rapidamente. Acredito que os países antigos, pobres na sua maior parte, tomarão conta em muitos poucos anos. E o povo que inventou os fogos de artifício sobreviverá àqueles que inventaram a mortal bomba atómica. Nós, americanos, talvez um dia cheguemos a todos os planetas e tragamos de cada um deles pequenas quantidades de solo, mas nunca chegaremos ao coração do universo, que reside na alma até da mais pobre e mais baixa das criaturas humanas.

Receio que o velho adágio “Irmãos sob a pele” não seja mais verdadeiro, se é que o foi algum dia. As nações ocidentais não merecem confiança, por mais democráticos que possam vir a ser seus governos. Enquanto os ricos governarem, será caos, guerras, revoluções. Os líderes para os quais nos voltarmos não estão em evidência. É preciso descobri-los. Deve-se lembrar, como disse certa vez Swami Vivekananda, que “antes de Gautama houve vinte e quatro outros Budas”.

Hoje não podemos mais contar com salvadores. Cada homem precisa de contar consigo mesmo. Como disse certa vez um grande sábio: “Não contes com milagres, tu és o milagre.”

1976

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