Yao Feng traduz “Clepsydra”

Há sete anos que Yao Feng, pseudónimo de Yao Jingming, tinha a tradução para Chinês do livro “Clepsydra”, do poeta Camilo Pessanha, escondida numa gaveta. Muitos anos e muitas alterações depois, a poesia “triste” de Pessanha em caracteres chineses será apresentada no dia 12 de Março, no âmbito do Festival Rota das Letras

pessanha
[dropcap style=’circle’]M[/dropcap]ais de quatro anos depois de ter traduzido Eugénio de Andrade (“Branco no Branco”, com edição da Livros do Meio), o poeta Yao Feng, pseudónimo de Yao Jingming (académico da Universidade de Macau), embrenhou-se na tradução de “Clepsydra”, de Camilo Pessanha. Há muito que o projecto estava na gaveta, fruto de uma parceria com o Instituto Internacional de Macau (IIM) e a Câmara Municipal de Coimbra, cidade de onde o poeta português é natural e onde se formou em Direito, antes de vir para Oriente.

Contudo, só sete anos depois é que Yao Feng decidiu publicar o trabalho, por ocasião da 5ª edição do Festival Literário Rota das Letras.

“Fiz uma revisão bastante grande e cuidadosa dessa tradução”, contou Yao Feng em entrevista ao HM. “Mudei muitas coisas, era o poeta tradutor daquele tempo e agora que revi a minha tradução, já não gostei. Mesmo assim não estou completamente satisfeito com a minha tradução”, disse Yao Feng, que não deixou de estabelecer uma comparação entre os poemas leves e contemporâneos de Eugénio de Andrade com a poesia nocturna de Pessanha.

“A sensação é muito estranha, porque quando traduzo Eugénio de Andrade ou outro poeta contemporâneo tenho muito mais confiança do que a traduzir Camilo Pessanha, uma vez que ele é o poeta que escreve muito com efeitos musicais. Os poemas têm muita rima, ele usa muitas simetrias, com muita mitologia. [Pessanha] também joga muito com uma pontuação muito própria dele onde, numa frase sem sujeito ou verbo, corta e põe uma vírgula ou ponto final. Confesso que algumas coisas não compreendi. Hoje em dia há muita pesquisa sobre a sua poesia e ainda existem sombras misteriosas. Mas dei o meu melhor para o traduzir”, contou. “Não há dúvida de que foi muito mais difícil traduzir Camilo Pessanha”, salientou Yao Feng, remetendo para diferentes épocas e estilos literários.

“Não senti tantas dificuldades em traduzir Eugénio de Andrade porque se calhar é mais fácil encontrar imagens orientais nos seus poemas. Eugénio de Andrade é um poeta do qual gosto e o qual não paro de ler. É um poeta que conheço muito bem e que até conheci pessoalmente. Quando o traduzi era como se estivesse a traduzir algo de um amigo. Com Pessanha houve mais distância, apesar de estar tão perto de nós, a cinco minutos de táxi (risos)”, brincou Yao Feng, referindo-se ao Cemitério São Miguel Arcanjo, onde repousa o corpo de Camilo Pessanha.

Repetição e perda

Yao Feng não tem dúvidas: no processo de tradução de “Clepsydra” para Chinês, houve muita coisa que se perdeu. “A minha língua materna [o Chinês] tem o seu sistema próprio de rima que não é compatível com a rima portuguesa e, por isso, esta tradução estava condenada desde o início à perda de qualquer coisa. Não se pode dizer que se perdeu muito, mas perdeu-se alguma coisa, sobretudo ao nível dos efeitos sonoros. Quando a tradução não consegue jogar com a musicalidade, perdem-se coisas”, disse. “A tradução de Camilo Pessanha está condenada à perda e a tradução tornou a poesia dele um bocado triste e com um conteúdo um bocado repetitivo. É a tristeza, a saudade, o amor que nunca deu frutos. Isso pode cansar um bocado, é uma poesia muito triste. Foi como ele escreveu: um ferro que sempre pesa no coração”, acrescentou.

Lançar este livro sete anos depois é “importante”, por se tratar de um poeta de Língua Portuguesa com fortes ligações ao território. “É talvez, dos poetas portugueses, aquele que é mais conhecido em Macau, que viveu aqui e marcou a literatura de Macau.”

Confinado ao mercado editorial do território, a “Clepsydra” em Chinês até poderia ser lida nas escolas, concordou Yao Feng, se fosse feita uma selecção rigorosa de alguns poemas. “Podíamos fazer uma selecção de dois ou três poemas, há um sobre a chuva, por exemplo… poemas mais fáceis e acessíveis para os estudantes. Não é necessário levar alunos das escolas secundárias a ler coisas tão pesadas. Podiam por exemplo ler mais Eugénio de Andrade, mais sol, mais água, em vez da sombra, e da noite (risos).”

Poesia e paixão

Esta não é a primeira vez que a poesia de Camilo Pessanha pode ser lida em Chinês, sendo que há alguns anos foi lançada uma tradução de alguns poemas, inserida numa colecção de autores portugueses, que teve o apoio do Instituto Camões e de editoras da China continental e que teve a coordenação de Yao Jingming e Ana Paula Laborinho (presidente desse instituto). Contudo, Yao Feng não deixou de comentar o facto dessa tradução ter sido feita por alguém que “infelizmente” não é poeta.

“Há uma teoria que defende que a poesia tem que ser traduzida por um poeta, mas às vezes o poeta também estraga a tradução. Depende de quem é e como é o poeta que traduz. Para mim o poeta tem que traduzir o tipo de poesia que conhece melhor, se não tiver paixão por esse tipo de poesia, então não consegue traduzir com paixão e prazer e isso pode condicionar o processo de tradução. O poeta que é tradutor não pode traduzir qualquer tipo de poesia”, apontou Yao Feng.

Ao contrário desta edição chinesa de “Clepsydra”, essa tradução conseguiu chegar às livrarias do continente. “O nosso objectivo consistia em levar livros de autores portugueses mais longe, para que pudessem ser distribuídos na China continental, porque os livros produzidos em Macau não podiam nem podem circular na China continental. Com esta colaboração e co-edição conseguimos”.

Rufino Ramos, secretário-geral do Instituto Internacional de Macau (IIM), referiu ao HM que a oportunidade de publicar esta tradução surgiu de repente, existindo projectos para distribuir a versão chinesa de “Clepsydra” em instituições académicas de Hong Kong, sem esquecer Taiwan. “Alguém tinha de fazer este projecto”, disse Rufino Ramos, que confirmou que a publicação é feita com o apoio da Fundação Macau. “A oportunidade de publicar este livro chegou há pouco tempo e quase nos apanhou desprevenidos. Era importante fazer chegar este livro a todos os lugares onde se fala Chinês”, apontou o secretário-geral do IIM.

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