João Luz VozesApocalipse, não [dropcap]P[/dropcap]ermitam-me um devaneio de ficção na direcção oposta à tranquila racionalidade com que as autoridades locais têm tratado a epidemia do coronavírus. Acabei de chegar a Macau (sexta-feira), depois de umas férias largas que começaram na última semana de Janeiro. Quando parti para Portugal estávamos longe dos cenários de ruas vazias e de toda a fantasmagoria subsequente. Passados alguns frangos assados e imperiais em Lisboa, começaram a chegar notícias do encerramento de casinos, da corrida às farmácias na busca de máscaras, quarentenas forçadas e escassez de tudo e mais alguma coisa. Entretanto, as imagens de Wuhan sugeriam um cenário de apocalipse zombie a lembrar os clássicos do mestre George Romero. No dia que regressei a Macau, um amigo contextualizou o timing das minhas férias uma forma simples: “agora as coisas já estão a voltar ao normal”. Parece que escapei a uma espécie de pena de prisão domiciliária, que não testemunhei no contacto com amigos mais próximos, que não se coibiram de tomar uns copos. Outro aspecto que importa referir é o alarmismo com que os média portugueses trataram este assunto, sedentos de sensacionalismo que veremos se será saciado com a confirmação do primeiro infectado português. Visto de Portugal, parecia que Macau estava a morrer de fome e sede, sem mantimentos, sem máscaras, sem esperança. Realidade contrariada com publicações nas redes sociais de prateleiras de supermercado cheias. Outro lamentável episódio foi o triste circo que fizeram com o retorno dos portugueses retidos em Wuhan e da relativa desilusão face à ausência de infectados. Uma vergonha completa. Feito o contexto, hoje sinto-me um personagem de um filme de zombies, com uma ligeira diferença. Em vez de despertar de um coma no pico do apocalipse, depois do total colapso de todas as instituições fundamentais da sociedade, (como Cillian Murphy em “28 Days Later”, ou Andrew Lincoln em “The Walking Dead”), abri a pestana já com situação controlada. É precisamente aqui que vou injectar um pouco de ficção nesta crónica, com uma pitada de crítica política. Imaginemos que não existe Estado, Governo e esferas de protecção pública num caso destes (o sonho molhado dos libertários e anarcocapitalistas). Em quanto tempo desceríamos para a total barbárie? Sem querer tecer grandes comentários à reacção das autoridades de Hubei, e Pequim (que cometeram erros gravíssimos no início da epidemia), o que seria de Wuhan sem um poder público forte. Sinceramente, alguém consegue imaginar um cenário em que privados, movidos pelo propósito basilar da busca de lucro, seriam chamados a intervir num cenário destes? Seria o apocalipse zombie. A natureza não discrimina entre ricos e pobres, entre membros de conselho de administração e empregadas de limpezas e está-se nas tintas para os mercados. Nunca escondi a minha veia “trashy” em termos culturais. Um gajo não pode só encher a pança de clássicos, não se come filet mignon todos os dias. Às vezes apetece mesmo um prato de bifanas. Os filmes de terror orgulhosamente maus, especialmente os de zombies, fazem parte do meu imaginário desde criança. Assim sendo, face às notícias alarmistas que chegavam a Portugal, depressa comecei a imaginar um cenário de “salve-se quem puder” em Macau. Quem viu filmes como “Dawn of the Dead” sabe que a sobrevivência num apocalipse zombie depende de quatro requisitos. Acesso a comida, água e medicamentos, um arsenal considerável de armamento, a segurança de um local fortificado e de difícil acesso a zombies e não esbanjar confiança a todos os que aparecem a pedir ajuda. Sobreviver ao desespero humano, por vezes, é mais difícil do que sobreviver aos avanços de uma horda de mortos-vivos. A Torre de Macau parece-me um dos locais ideais para montar fortaleza, com a possibilidade de isolar pisos caso as portas de entrada cedam. Restaurantes e acesso a mantimentos não faltam. A estrutura oferece também um ponto de vantagem para vigilância e defesa, se juntarmos à equação um par de carabinas sniper a coisa até se poderia tornar divertida. Importa referir que este tipo de cenário, roubado à ficção mais tola, é para muita gente uma espécie de nirvana ideológico preferível ao pavor de ter de pagar impostos e à brotoeja dogmática nascida da mais paranóica alergia estatal. Como é óbvio, estou a brincar. Mas, não me leiam mal, a possibilidade de uma coisa destas resultar em caos é bem real, principalmente face à gula humana por antibióticos e ao factor multiplicador das alterações climáticas na microbiologia. Até lá, aproveitem ao máximo a estabilidade social e a segurança de vivermos numa sociedade estruturada capaz de responder a ameaças invisíveis.