Pedro Arede EntrevistaWonderland | MJ Lee e Maing Hee Won, artistas: No país das bizarrias Aberta aos olhos dos visitantes até ao próximo dia 24 de Maio no Armazém do Boi, Wonderland é uma exposição que parte em busca do lado oculto e menos óbvio de Macau. Nas mesmas ruas, religião e superstição convivem cordialmente com prostituição disfarçada. O enquadramento é oferecido pela obra das sul-coreanas MJ Lee e Maing Hee Won, onde a lama, os néons e a mitologia grega albergam os paradoxos de uma cidade próspera, mas rebuscada. Boa sorte [dropcap]D[/dropcap]e que forma Macau e as suas camadas serviram de base para materializar as obras que podemos ver em Wonderland? MJ Lee: Como residente de Macau e esposa de um macaense é interessante observar o estilo de vida do meu marido, metade português e metade chinês. Vamos à missa no dia de Natal e aos templos para rezar durante o ano novo chinês e isso acaba por ser, de certa forma, bizarro. Eu cresci como cristã, onde rezar a outro Deus é quase insultuoso. Mas em Macau, no geral, não sinto esse peso e o culto acaba quase por assumir uma perspectiva mais cultural do que religiosa e por isso, as pessoas têm prazer em ir rezar em família aos templos ou numa missa. É complicado e bizarro e é o que sinto em relação a esta cidade. Por exemplo, junto às ruínas de São Paulo existe um templo, algo que seria impossível na Coreia do Sul, porque aqui as religiões e as culturas têm coexistido de forma pacífica há mais de 500 anos e é bonito que assim seja. Maing Hee Won: Acho que me foquei num ponto muito mais específico dessas camadas que todos sabemos que existem em Macau. A mistura de culturas é muito interessante, mas sempre me atraiu mais o negócio dos casinos. Fico sempre à espera de encontrar algo mais parecido com Las Vegas. Quando vi pela primeira vez os grandes hotéis, deu-me a sensação de estar num enorme parque de diversões e fiquei com muita vontade de entrar. Mas quando entrei senti que era muito pouco interessante. É tudo igual, o Venetian, o Parisian… todos os hotéis parecem ser o mesmo lugar por dentro e não há muito para ver. Por isso, continuei a pensar o que faz de Macau um lugar único, ou seja, que tipo de cenários resultam do negócio gerado em torno dos casinos. Continuei a questionar-me sobre isto e deparei-me finalmente com as saunas que têm aqui características únicas. Como decidem por onde começar a trabalhar um determinado tema e como surgiu a ideia da exposição? ML: Por estar há muito tempo fascinada com o estilo de vida das pessoas de Macau, tentei imaginar de que forma poderia mostrar a minha perspectiva, ou seja, as emoções que sinto quando testemunho a ligação que as pessoas têm com os rituais religiosos. Por isso, dei por mim a pensar qual seria a melhor forma de criar algo que transmitisse, simultaneamente, este tipo de sentimento bizarro e a minha crença de que nada é permanente. Quando pensámos numa exposição chamada Wonderland [País das Maravilhas], decidimos que íamos fazer algo, lá está, bizarro, mas próspero e ao mesmo tempo instável, quase como que uma ilusão. Esta exposição foca-se nas contradições e no carácter irónico de Macau. No entanto, acho que as pessoas de Macau não sentem esta cidade tão bizarra como eu, talvez porque cresceram aqui. Mas agora, mesmo esse lado mais oculto faz parte do ar que respiram. MHW: Normalmente começo por algo que me faz ficar zangada. Acho que o principal sentimento que associo ao meu trabalho é a raiva. Sinto que perante a sociedade, e porque persigo a feminilidade, tenho de agir de determinada forma. Isso faz-me continuar a questionar a sociedade e a mim própria. Gosto de coisas bonitas, mas não sei se é um gosto pessoal ou um outro que fui forçada a adquirir. Na verdade, acho que é algo que vem de fora e por isso pergunto-me sempre quem é e de onde vem essa força que decide sobre o que é o sentido estético. Quando me deparei com as saunas de Macau, não posso dizer que senti raiva, mas fez-me lembrar que a sociedade continua a ser dominada por uma perspectiva masculina sob vários aspectos, apesar de considerar que actualmente existe bastante igualdade entre géneros. O que pode simbolizar um santuário que mistura elementos tão diferentes como a argila, ouro e uma televisão? MJ Lee: Gosto das emoções que resultam da colisão entre materiais heterogéneos e essa combinação transforma-se em algo estranho. Quando vejo figuras religiosas ou estátuas de porcelana nas ruas de uma cidade cosmopolita como Macau, fico sempre com a sensação de serem apenas decorativas e desprovidas de significado. Gosto das emoções que resultam da mistura de materiais diferentes e até lhes poderia atribuir algum significado, mas acho que assim estaria a limitar a imaginação de quem vê as obras. O meu objectivo era fazer combinações bizarras e focar-me na materialidade e não tanto no significado. A fragilidade é outros dos pontos principais do meu trabalho. Na obra que fiz podemos ver um objecto de barro que aos poucos se vai desfazendo na água. Eu própria quando fiz a instalação tive medo que a televisão fosse cair devido ao seu peso e à instabilidade do material que a suporta. Queria criar algo capaz de provocar ansiedade às pessoas quando vissem estes materiais, que não são propriamente estáveis ou sólidos. Nos dias que correm, marcados pela pandemia, que papel podem ter as superstições e as crenças religiosas? MJ Lee: Acho que a crise da covid-19 tornou mais clara a forma como vejo o mundo, ou seja, nada é para sempre. Estamos a testemunhar a destruição da civilização tal como a conhecemos e a forma como de um momento para o outro se instalou o caos, com enormes perdas económicas e humanas. Isto tudo faz-me pensar que, na vida, não existe nada que valha a pena adorar ou que nos faça ficar obcecados. As superstições não podem ajudar a acabar com este incidente, certo? Acho que, neste momento, há cada vez mais pessoas a deixar de acreditar na religião e não nos podemos esquecer que ela também faz parte da civilização e que foi criada por pessoas. Uma vez perguntaram ao Dalai Lama se seria possível travar o aquecimento global e os problemas inerentes a essa questão. Ele respondeu que o planeta também reencarna e que tal como todos nós nasceu e um dia vai morrer. Ou seja, é impossível impedir a destruição do mundo. Temos de aceitar este tipo de mudanças e desastres. No final, vamos acabar todos por ser apenas uma porção de poeira sem importância. É isto que quero transmitir com a minha obra. É obscuro e triste, mas acho que é precisamente isso que fundamenta a existência humana. Se tudo é assim tão ténue, o que devemos procurar ao longo da vida? ML: Não sei a resposta. Como artista, penso que é importante colocar as questões às pessoas, mas não lhes dar as respostas. Temos de continuar a questionarmo-nos e tentar perceber o que realmente importa na vida. Pode ser diferente de pessoa para pessoa, mas para mim o que é importante é o sentimento que tiramos de cada momento. Não é uma coisa física, é algo que pode ser desmaterializado. Por exemplo, quando as pessoas têm experiências de quase morte elas vêem apenas momentos importantes das suas vidas. O meu pai experienciou este tipo de sensação e contou-me que foi quase como um filme, em que viu momentos da sua vida em catadupa. Por isso, o que ele viu talvez seja o que realmente importa para ele. Para mim, cada momento é muito importante. Que equação é esta capaz de ligar a mitologia grega e o Renascimento ao submundo das saunas de Macau? MHW: Os mitos gregos e os clássicos são uma ferramenta que uso para dar mais força às minhas imagens, inspiradas nas personagens do Manga japonês. Normalmente a principal estética das mulheres do Manga japonês fixa-se na imagem da juventude. São raparigas com cara de bebé, olhos enormes, bochechas gigantes, narizes pequenos, mas de corpo amadurecido, seios enormes e tudo aquilo que possamos desejar. É possível encontrar uma ligação entre essa estética, o ideal de beleza do Renascimento e as deusas dos mitos gregos. Todos os estes elementos transportam-nos para a existência de um desejo comum. A partir daí, transformar estes objectos de desejo em formas de arte clássicas, de certa forma recatadas e alinhadas em série numa linha sem fim à vista, foi a forma que arranjei para pôr a nu esse paradoxo. No final da linha onde estão expostas todas as mulheres, tal como acontece nas saunas de Macau, surge a figura de Vénus inspirada na obra de Botticelli [Nascimento de Vénus], como símbolo de algo precioso e elevado. Desenhei-a ao estilo do Manga japonês, mas na sua vertente pornográfica. Na minha obra, Vénus não tem nada a esconder e apresenta-se de forma erótica. Perante isto, questiono-me sobre se uma deusa como Vénus pode, ao mesmo tempo, ser reduzida a um objecto de desejo e ser contemplada, sem qualquer tipo de perversão. O que pensa do negócio da prostituição em Macau? MHW: Às vezes sinto raiva, mas não fico particularmente zangada em relação a este negócio. Há mulheres que lucram com a prostituição e querem fazê-lo porque conseguem ganhar muito dinheiro e esse dinheiro faz com que muitas mulheres de diferentes países venham parar a Macau. No entanto, é um negócio feito às escondidas. Actualmente o poder que as mulheres detêm na sociedade está a crescer e por isso acho que é natural que ainda haja algum sigilo, mas também significa que vivemos numa sociedade dominada por homens. Os homens querem que este negócio exista para que possam continuar a sentir-se como os imperadores que existiam noutros tempos. Então qual é a solução? MHW: Acho que não há solução. Porque tal como referi na minha obra, esta é uma questão que vai continuar a existir para sempre. Por outro lado, se a prostituição fosse legalizada talvez pudessem existir ambientes seguros e justos. Quando pensam em executar uma obra, existe a preocupação de mudar mentalidades? ML: Acho que a arte é uma boa plataforma para servir de escape para as pessoas contactarem com diferentes perspectivas, por isso, através dela podemos colocar essas questões às pessoas. Quando as pessoas têm uma vida ocupada não têm tempo para se questionarem, mas a arte é uma boa plataforma para trazer à ribalta algumas dúvidas sobre a vida. Acho que é por isso que a arte existe, porque nós artistas somos em menor número e estamos sempre a duvidar de alguma coisa e não estamos inseridos no funcionamento normal da sociedade. MHW: Sou uma pessoa muito sarcástica. Acho que a arte não tem a capacidade para mudar o mundo, mas pode ser quase como uma guloseima. Às vezes podemos dar uma trincadela num rebuçado estranho e picante. Acho que a arte pode acordar as pessoas e fazer barulho, mas acho que não pode mudar o mundo e a sociedade.
Sofia Margarida Mota Eventos Festival Internacional de Cinema - EspecialIFFAM | “Wonderland” é a primeira longa-metragem de Wang Chao Koi A secção “Industry Hub” da 3ª Edição do Festival Internacional de Cinema de Macau seleccionou 14 projectos para serem apresentados às produtoras e distribuidoras internacionais que marcam presença no evento. De Macau foram escolhidos os filmes “Lost Paradise” de Tracy Choi e “Wonderland” de Wang Chao Koi. Além dos três prémios monetários a ser atribuídos por esta secção, este ano há mais uma recompensa dedicada ao filme que melhor retrate o espírito de Macau Jogo de sonho [dropcap]W[/dropcap]ang Chao Koi está agora a preparar a sua primeira longa metragem “Wonderland”, um projecto seleccionado para apresentação na secção internacional dedicada à indústria no Festival Internacional de Cinema de Macau. O título do filme foi inspirado num website – wonderful world – que contém os dados das pessoas com dívidas nos casinos, começa por contar Wang Chao Koi ao HM. A partir daqui, estava dado o mote para “Wonderland”, uma película que pretende levar ao grande ecrã, não só a temática do jogo e a ambição a ele associada, como a questão da emigração, das pessoas que vêm do interior da China para Macau para trabalhar como recrutadores de jogadores e que trocam a vida com a família pela busca desenfreada de dinheiro. “O protagonista da história, Huei, é um agente de apostas da China que tem como emprego angariar jogadores. É um emigrante. Entretanto, um dos seus clientes perde muito dinheiro e acaba por fugir para a sua terra natal. Huei vai atrás dele e confronta-se com o lugar que deixou 20 anos antes, quando decidiu ir à procura de uma forma de ganhar rapidamente dinheiro. Este confronto, levanta a questão da felicidade e onde é que ela se pode encontrar”, refere Wang. Bons passos Para o jovem realizador, Macau está no bom caminho quando se fala de cinema e de desenvolvimento de uma indústria local. “Quando comecei a fazer filmes, há 12 anos, não conseguia sequer arranjar material para filmar no território. Tinha que ir a Hong Kong. Agora isso já não acontece, já e mais fácil fazer filmes cá”, refere. No entanto ainda há um caminho a percorrer no sentido de divulgar e apoiar o cinema local, acrescenta. Por outro lado, “há uns anos, quando as pessoas falavam de filmes chineses falavam de cinema do interior da China, de Hong Kong, de Taiwan e mesmo de Singapura ou da Malásia, não se falava sequer de Macau. Mas agora, cada vez mais, Macau começa a ser reconhecido neste sentido”, sublinha, destacando o papel do festival para o efeito.