Voar em 1904: o primeiro romance chinês de ficção científica《月球殖民地小说》

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] China lançou o primeiro satélite, o Dongfanghong, em 1970. Treze anos depois do Sputnik, nove anos depois do primeiro cosmonauta ter visitado o espaço e uma semana depois da Apollo 13 ter regressado da Lua.

A 16 de Agosto de 2016 a China lançou o primeiro satélite de comunicação quântica do mundo, baptizado de Micius, em honra do emblemático filósofo chinês Micius/Mozi, e concebido para teleportar dados para além dos limites do espaço e do tempo.

Tornou-se normal que a China esteja diariamente na origem destes títulos sensacionais, embora inconcebíveis e incompreensíveis. Mas quando é que terá tido o seu primeiro romance de ficção científica? Isto deu-me que pensar.

1904 estava destinado a ser um ano extraordinário para a literatura chinesa, mas acabou por ser esquecido. A China ainda é conhecida como o país da (finada) Dinastia Qing. Uma importante revista literária, a “Ficção Ilustrada” 《绣像小说》, publicou em fascículos 《月球殖民地小说》(Colónia: Lua), um romance de ficção científica, com uma estrutura narrativa clássica na literatura chinesa. O autor assinava 荒江钓鱼叟 (Velho pescador do rio agreste), mas a sua identidade permanece um mistério.

O romance inacabado contém 35 capítulos, com um total de 13 milhões de palavras impressas. Conta-nos a história do valente Li Anwu e do seu amigo japonês Fujita Tamataro, que ajudaram Long Menghua, do Distrito de Xiang na província de Hunan, a fugir de uma tentativa de assassinato e a reunir-se à mulher e ao filho, há muito perdidos. Long Menghua viveu várias aventuras à volta da Terra nas naves de guerra voadoras de Tamataro. No final, toda a família Long imigra para a Lua, para onde o filho vai, obviamente, estudar.  Como se fosse um símbolo mágico, em cada ilustração do romance aparece um balão de ar quente, que parece simbolizar a aspiração colectiva da Dinastia Qing: voar. No mesmo romance, o autor desconhecido também se pôs a reflectir sobre a relação entre a Terra e os outros corpos do sistema solar:

“Da sua nave espacial Fujita Tamataro observava que as naves do povo da Lua eram enormes, frágeis e brilhantes. Arrumou as armas e pensou: a Lua é pequena, mas que civilização tão avançada! Desde essa altura, Tamataro dedicou-se completamente à sua investigação. Queria inventar uma nova máquina voadora que pudesse voar livremente pelo universo.”

Piscadela de olho.

12 Abr 2017

Para onde voam os pássaros

[dropcap style =’circle’]P[/dropcap]ara longe. Isso sabe-se. Quando migram, adiantam-se às estações. Têm percursos fixos independentemente dos perigos e cumprem-nos anualmente mesmo tendendo para a extinção. Eles sabem onde vão. Guiando-se pelo magnetismo da terra. Há sítios do mundo em que hoje se reeduca espécies para encontrarem outros caminhos e outros lugares.

E como voam. Nessas formações perfeitas em flecha ou em arco. Eles, os seres redondos por natureza poética ou filosófica, ou fenomenológica. Disse-o Klee: “todo o pássaro é redondo”, e disse-o Bachelard, evocando Rilke quando escreve “o gorjeio redondo do ser redondo arredonda o céu em cúpula”, ou Michelet quando define o pássaro como “quase totalmente esférico”. A forma redonda não como forma física de natureza geométrica mas como imagem metapsicológica. O ser e o ser do pássaro redondo porque centrado em si. São no entanto, em bando, o movimento por excelência, a seta de sentido. O sentido do todo. E, mergulhando os olhos naquelas nuvens imensas de aves, em bando compacto, em estruturas indecifráveis na sua causalidade, definindo ritmos e padrões mutantes, evoluindo no ar consistentemente, há uma sensação de maravilha. E o bando, mesmo na mansidão rítmica e dinâmica dos inúmeros arabescos e floreados, nunca se perdendo como um corpo, orgânico e uno na sua identidade. Plástico no entanto ao ponto de ver a ligação entre as minúsculas partes, como células, distender-se mais ou menos elástica, deformar-se por acentuação ou nivelarem-se entre si as linhas invisíveis que as ligam. Um pouco como um tecido tridimensional arrastado pelo vento e pelo tempo, suavemente a mudar a sua curvatura e a modelar ondulações várias, sem romper. Ou como uma malha fina e flexível. Hipnótica.

A beleza emocionante, e emocionante sem retórica, até quase à força de lágrimas arrancadas à nossa dificuldade em lidar por vezes com o que é belo. Faz pensar que talvez o embalo para olhos contemplativos, com que invejamos os pássaros, se assemelhe a referências remotas, muito lá atrás no início de tudo no ventre materno, a oscilação dos fluidos um eterno romanço de conforto em que só se antevê um mundo fora da caverna, em subtis mudanças de luz e sons coados. E porque embalamos o corpo ao som da música, também nos embalamos solitariamente ao sabor de formas que nos conduzem o olhar. Pequenos humanos que dançam uns com os outros, que também somos. Aos pares ou em grupos. Só ao sabor do ritmo e da melodia, ou em coreografias imaginadas e ensaiadas num corpo de baile. A eterna nostalgia do vôo que afinal nunca fizemos. Excepto, ou talvez sobretudo, porque a natureza dos pensamentos tem essa mesma qualidade e capacidade das aves. O que nos liberta das limitações corpóreas e terrenas, se bem permaneçam sempre ligados a um corpo como à luz de um farol. Os pensamentos.

Os pássaros pequenos – que o mesmo é dizer, pássaros porque só eles o são em termos de espécie – como os estorninhos, e porque são presa de predadores de maior vulto, voam às centenas ou voam aos milhares ao fim da tarde antes de escolher o poiso para dormir. A grandes velocidades navegam juntos em padrões assimétricos, altamente coordenados. A estas revoadas dá-se o nome colorido, burburinho de estorninhos. Uma onomatopeia bonita que quase rima com o seu nome de pássaros a adejar asas velozmente. Agitados. Animados. Por isso a questão é afinal para onde voam os pássaros quando não voam para lado nenhum.

Esses bandos de dezenas centenas ou mesmo milhares de pássaros ou outras aves, que evoluem juntos no espaço, porque a natureza lhes ensinou que é melhor, para se protegerem de predadores, naturais ou não, mas também porque têm um destino comum e se ajudam para essa finalidade. Enquanto outras aves voam sós, e não há juízos possíveis sobre a validade de uma ou outra forma de existir.

Eles levantam vôo de forma aparentemente despreocupada e aleatória, mas gradualmente vão definindo as suas posições e o seu lugar no bando. Posicionam-se numa formação que permite usufruir do impulso gerado pelo deslocamento do ar, causado pelo bater das asas do que voa à sua frente. As primeiras aves do bando, ajudam a vencer a resistência do ar criando um vácuo que ajuda as outras a planar ou a voar com menor esforço e por mais tempo. E quando voam para longe é uma economia relevante. Em tão pequenos seres vivos, que atravessam por vezes anualmente milhares de quilómetros. O bater das asas deixa para trás um redemoinho de ar, nesse turbilhão, em que o ar é empurrado para baixo e seguidamente num jacto para cima. E é aí que a ave seguinte pode fluir, economizando energia e desenvolvendo um esforço menor. Todos os órgãos sensoriais apurados se coordenam para uma orientação espacial precisa e os manter com exactidão no seu lugar, relativo a seis ou sete outros, que lhes voam em redor. E isso exige uma sincronia perfeita no batimento das asas, aferida pelas sensações de deslocação do ar, como uma orquestra em uníssono, ou quando um som ainda paira no ar e já outro se começa a formular. Os líderes são eventualmente os melhores navegadores. É um mistério como assumem esse reconhecimento de que o são. Mas no vôo em bando, este vai mudando regularmente a formação e os que lideram revezam-se nesse papel. Subtilmente, sem quebras de ritmo, sem dilemas, luta ou contestação. Seguindo viagem.

Quantas comparações, quantos símbolos encontram uma imagem no reino das aves, no seu modo de vida. A rapina, o vôo, o olhar, o golpe de asa. E estes mecanismos de grupo. A partir daqui, quantas metáforas se poderiam pertinentemente formular… Políticas, sociais, existenciais.

Quantos povos deveriam poder dizer “queres voar comigo?”… e quantos amantes deveriam saber dizê-lo também. O lirismo é um estado dificilmente partilhável. Sobretudo com esta puerilidade. No mundo de hoje como no de sempre. Mas tudo a tender para pior. Por isso me apetece esta metáfora infantil e simples.

Este é o discurso mais próximo de uma afirmação política que consigo de momento. Tão difícil escrever. Centrarmo-nos em algo que faça sentido, numa emoção relevante e abrangente que faça sentido. Seja ela enebriarmo-nos com concertos de Schumann, ou com a contemplação do vôo de bandos de pássaros. Que seja coincidente com o momento, anestesiante e extensível a outros sentidos possíveis, mas mais universais do que o simples desabafo da nossa pequenez. Desde que essa espécie de embriaguez possa extravasar o círculo redondo, passe a redundância, do nosso eu em êxtase lúdico, e envolver os outros no prazer de uma imagem bela, em algum prazer de um simples momento.

Para além de todo o registo de amargura, de dispersão e confusão, de injustiça, de desígnios imperscrutáveis, em que somos um bando desavindo, penso nas nuvens de pássaros. Funcionamos não como um bando mas como diferentes bandos de espécies distintas. Incompatíveis. Inimigas. A solidariedade, palavra terrível e aglutinadora como uma cola, mas por vezes tão desastrosa e inábil como esta. E como a cola, manietante e geradora de dependências. Melhor dizer como os pássaros que levantam vôo de forma caótica, mas que, subtilmente e às vezes levando muito tempo, se vão organizando naquela formação que é a melhor para o percurso de todos, sem competição sem hesitações. Melhor dizer, mesmo que por palavras. Podemos voar? Podemos voar convosco? Podemos voar juntos? Podemos voar? Poderíamos voar. Se fôssemos pássaros. Como humanidade, não vamos longe.

3 Jul 2015