A Fábula do Humano e do Tigre

[dropcap]E[/dropcap]m Um Tigre À Porta Da Sé, Mónia Camacho começa a sua narrativa contrariando o ponto de vista usual em que nos encontramos. Maria Al-Malik, princesa de Marrocos, chega à Estação de Campanhã e quer fazer daquele espaço a sua residência. Logo de imediato, o Chefe da Estação diz: «Minha senhora, isto é uma estação de comboios… […] Isto é um sítio onde se chega e de onde se parte. Não é para ficar. Percebe?» (p. 11) É também este o argumento que Heidegger dá para que o tédio de primeira forma se instale em nós. O exemplo de Heidegger, contudo, refere uma situação do nosso quotidiano e não uma situação inusitada como aquela com que Camacho começa a sua narrativa: chegar 5 minutos atrasado ao comboio e o próximo terá lugar várias horas depois. O tédio instala-se precisamente porque estamos num lugar que não era para estarmos, isto é, para ser mais preciso, o lugar onde estamos não é um lugar para se estar, mas um lugar para chegar e partir. Por conseguinte, as horas seguintes, de espera do próximo comboio vai fazer com que o tédio se instale.

O que Mónia Camacho nos mostra com este exemplo da estação de comboios é que uma narrativa começa precisamente por um dar-se conta da ruptura com o nosso ponto de vista usual. Sem esta ruptura não haveria escrita, pois ela pretende iluminar os espaços, ou de incompreensão ou inusitados, daquilo que se apresenta, que tanto pode ser a nossa vida quanto uma situação que acontece no mundo, como é o caso de uma princesa de Marrocos ir instalar-se na Estação de Campanhã: «Esta será a minha casa até ser recebida pelo senhor Ministro.» (10) Perante esta perplexidade, de alguém a querer instalar-se na estação de comboios, o Chefe da Estação não sabe o que fazer e chama a polícia e o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. A situação, apesar de inusitada, só tem capacidade narrativa porque a pessoa em questão é uma princesa de Marrocos e muito conhecida em Portugal. De tal modo que, quando o agente da polícia chega «Ficou sem saber se pedia um autógrafo ou a identificação. Na verdade, sabia bem quem ela era: uma espécie de “Madona” moura.» (12) Assim, logo desde o início da narrativa somos convocados para aceitar uma situação inusitada.

Evidentemente, dar-se conta de uma ruptura com o nosso ponto de vista usual não é o mesmo que apresentar logo de início uma situação inusitada. Aqui tornam-se uma e a mesma coisa, porque aquilo que leva à situação inusitada do início do livro conecta-se com o que produz a ruptura com o nosso ponto de vista usual: tornar-se outro. A heroína de Um Tigre Às Portas Da Sé pretende deixar de ser quem é para passar a ser outra pessoa. Leia-se, aquilo que ela responde ao polícia quando lhe pergunta se vem dar um concerto: «Venho ser daqui.» (12) Ou, mais adiante: «Esta é aquela vida em que vou ser portuguesa – disse em voz alta.» (20) Por conseguinte, estamos diante de uma espécie de conversão. Alguém que está prestes a deixar de ser quem é para passar a ser outra pessoa. E, como é comum em todas as conversões, aquele que se converte – que passa a ser outro – começa a ver o seu passado como um peso morto, como algo que o afastou de ter sido quem é, mais cedo. A meio do livro, perante a pergunta – «Mas, afinal, o que precisa de ser perdoado?» (26) – do seu interlocutor, que pretende ser seu biógrafo, a princesa responde: «A minha vida inteira. É por isso que quero ser outra.» (26) Ou, adiante: «Às vezes, sinto que o tempo passou por mim sem me dar importância. Sem me conquistar.» (30)

Estamos, por conseguinte, perante uma narrativa de conversão, de alguém que se dá conta de que não quer mais ser quem é, que se desperdiçou, que desperdiçou a sua vida e quer recuperá-la, quer reconquistar-se. Assim, Um Tigre À Porta Da Sé é também um livro acerca de deixar de se ser, isto é, um livro que nos faz ver como podemos passar uma vida sendo outro que não nós, à nossa revelia, como se nunca chegássemos a ser quem somos ou como se pudéssemos deixar de ser quem somos através de uma espécie de desistência de nós mesmos. Que devemos entender por conversão? Leiam-se duas passagens da escritora às páginas 27 e 28-29: «Há sempre um momento “clic”; um momento revelação em que todas as peças se movem para o seu lugar.» (27) «Não precisava de mais nada: mudar o mundo. Todo, de preferência. Ou, pelo menos, a parte que importava, se conseguisse saber qual era. Era para isso que ali estava. Embora só agora se apercebesse.» Ou seja, a conversão, o tornar-se uma outra diferente da que tinha vindo a ser, dá-se naquele momento, como um «clic», como São Paulo na estrada de Damasco. A princesa dá-se conta de que a parte que importa mudar no mundo é ela.

Quem é esta mulher que quer ser quem até aqui não foi, que sente que em algum momento da sua vida desistiu dela? Somos nós. Mas se por um lado se trata de um livro ontológico, existencial, de alguém que procura por si mesmo e para isso precisa de deixar de ser quem sempre foi, essa ilusão de si, também se trata de um livro que aborda o problema da ética em geral e da ética da escrita em particular através da personagem Biógrafo. À página 15 opera-se uma alteração na narrativa ou, melhor seria dizer, a narrativa é acrescentada com a introdução de mais um elemento: o Biógrafo. Leia-se: «O Biógrafo ensaiava a melhor forma de dizer ao editor que não podia escrever o livro. Não queria ser infiel ao morto. Demasiados segredos. Cada fio que puxava ameaçava meia cidade. E a outra meia escapava por mero acaso. Um terramoto. E lisboa não poderia ter mais nenhum. Seria possível escrever a biografia de alguém que odiamos sem fugir à verdade? Alguém que, se não estivesse morto, mataríamos? […] Este trabalho estava a acabar com o bom senso que lhe restava. Não o devia ter aceitado. A burrice paga-se quando só se quer dinheiro. O problema era já ter gastado mais de metade do adiantamento que recebera.» (continua)

3 Nov 2020