Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA última garrafa [dropcap style≠‘circle’]R[/dropcap]AUL: Quer então dizer que para morrer com a vossa ajuda, tenho de provar que não querer viver é: 1º uma doença; 2º uma doença terminal; e 3º de insustentável sofrimento? (sentando-se de novo) DOUTOR: Isso mesmo! Não se pode chegar aqui e dizer que não se gosta de viver e, pronto, passa-se imediatamente a ajudar a morrer. Não sei se está a ver o alcance da coisa? Tínhamos bichas de adolescentes com corações despedaçados, à porta, todos os dias; donas de casa a quem os maridos não prestam atenção; mulheres e homens enganados pelos conjugues. Enfim, está a ver! Era um sem fim de gente a aparecer aqui, para ajudarmo-los a morrer. RAUL: Senhor doutor, compreendo perfeitamente o que me está a dizer. Mas o senhor é que não está compreender aquilo que lhe tenho vindo a explicar. Eu não tenho uma causa para querer morrer, senão não querer estar vivo. Mais nada. Estar vivo é horrível. Não se trata de uma consequência, mas sim de uma causa. Nada na minha vida é razão para o suicídio. Antes pelo contrário. Não tenho coração despedaçado, não tenho conjugue que me engane, nem sequer rejeições sexuais, para além do que é normal na existência humana, e nem sequer quaisquer problemas com a profissão que exerço ou onde a exerço. O meu problema é com a vida em geral, não com as suas particularidades. Por favor, não tome aquilo que lhe digo de ânimo leve. Julgo que fiz mal em vir aqui. (levanta-se e dirige-se para a porta) DOUTOR: Não se trata disso, homem. (também se levantando e seguindo-o; toca-lhe no ombro) Não se vá já embora. Sente-se, por favor! Vamos lá conversar. Olhe, você é o meu último paciente de hoje, até podemos estar aqui mais tempo. (dirigindo-se ambos para os seus lugares anteriores) Não me leve a mal. Estou tão somente a tentar compreendê-lo. E, ao mesmo tempo, também a tentar explicar-lhe como é que o seu caso é visto daqui deste lado. Você ponha-se no meu lugar! Entra-me um indivíduo por esta porta, que nunca vi mais gordo, e desata a dizer que quer morrer, e que quer eu ajude. Vamos lá devagar! Não se trata de uma gripe! RAUL: Compreendo, doutor. Sei que não é culpa sua. A situação não é muito ortodoxa. DOUTOR: (rindo) Não é muito ortodoxa? Você não brinque, homem! É uma situação inexistente. RAUL: O senhor tem razão. (preocupado) Mas gostaria que não me confundisse que os casos hipotéticos a que se referiu há pouco atrás. Porque a minha situação é completamente diferente. E bastante ponderada. Não é de ânimo leve que chego aqui e lhe peço o que lhe estou a pedir. DOUTOR: Já vi. Sossegue, homem. Vamos lá tentar perceber o que se passa. RAUL: Aí é que está, doutor! Não há nada para perceber. Se quiser, é um cancro na alma que vai corrompendo tudo o que sou. E nestes últimos tempos tem-se tornado insuportável. DOUTOR: Está bem, mas eu tenho de perceber isso. Não po… (batem à porta) DOUTOR: Sim? ENFERMEIRA: Posso, doutor? DOUTOR: Toda a licença. Diga! ENFERMEIRA: Queria saber se ainda vai precisar de mim. É que já passa da hora, ainda tenho de passar pelo colégio dos miúdos. DOUTOR: Não, não. Pode ir, claro. Até amanhã. ENFERMEIRA: Até amanhã, doutor. (fecha a porta) DOUTOR: (levanta-se e abre a porta de uma estante) Posso servir-lhe um whisky? RAUL: Se não for incómodo. DOUTOR: Não incomoda nada. Deseja gelo, água lisa ou bebe-o puro. RAUL: Como já vi a garrafa, bebo puro. É crime estragar tão bom whisky com água. DOUTOR: Lá isso é verdade. Eu também só bebo puro, sou pouco escocês. (volta à mesa e serve o whisky e propõe um brinde) DOUTOR: À sua! RAUL: Obrigado. À sua! DOUTOR: Então, aonde é que estávamos? RAUL: Estava a dizer ao senhor doutor que não me confundisse com os casos… DOUTOR: Sim, sim. Já me lembro. Pois e eu ia precisamente a dizer-lhe que tenho de perceber aquilo que se está a passar consigo. Já percebi que não é um homem vulgar. RAUL: Desculpe, doutor, mas vulgar sou. Sou um homem como os outros. DOUTOR: Quero dizer no tocante à sua decisão de pôr termo à vida. Não se trata de um impulso que teve ou de um acontecimento que o fez tomar essa decisão. Arriscar-me-ia a dizer que é algo de filosófico. RAUL: Isso de filosofia é que não! Não me venha com filosofias. Não se trata de filosofia, trata-se de doença, doutor. Julgo que não há muito o que perceber, senão que é uma doença que me está a causar um sofrimento insuportável. E… DOUTOR: A vida, portanto. RAUL: Perdão!? Não compreendi. DOUTOR: A vida. A doença a que se refere é a vida. RAUL: Sim, a vida. (silêncio) RAUL: Mas quando digo que se trata da vida, há que dizer também que não sei bem. DOUTOR: Não sabe bem? RAUL: Claro, doutor. É que se fosse só a vida, provavelmente haveria mais casos como o meu. Haveria imensos. DOUTOR: Estou a ver. RAUL: O que quero dizer é que a vida, para mim, não é vida. É e não é. É, porque estou vivo e tenho as minhas responsabilidades como todos os outros. Não é, porque, sem razão nenhuma, ela se torna insuportável. Está a compreender? DOUTOR: Estou, estou. Continue, por favor! RAUL: É isso, doutor. Em mim, a vida é uma doença. E, no entanto, para tantos outros, para o senhor, por exemplo, a vida é apenas a vida. DOUTOR: Sim, estou a ver. E, dizia-me há pouco, padece disso desde a adolescência, portanto. RAUL: Mais ou menos. DOUTOR: Diga-me uma coisa: também não foi sempre assim, pois não? RAUL: Assim como? DOUTOR: A intensidade da dor. RAUL: Não. Dor sempre houve. Por vezes atenuava, sem perceber bem porquê. Mas de há alguns anos para cá, uns oito talvez, tem sido pior. E os últimos dois são difíceis de descrever, doutor. DOUTOR: Deseja um pouco mais de whisky? RAUL: Por favor, doutor.