Trilogia

[dropcap]D[/dropcap]e alma cheia, no caminho de regresso. A sonhar paisagens, embalada pelo ronronar mecânico e muito mais pelas palavras que ficaram a ecoar.

Há entre o Antártico e o Atlântico sul uma rota conhecida dos icebergs. Daqueles que, descomunais, se desprendem e encetam uma deriva como enormes jangadas de gelo. Brancos, vazios e silenciosos. Sem nada. Simplesmente uma rota de suicídio neste aquecimento global. Desertos em busca de fragmentação e diluição nos mares mais temperados. Um perigo para a navegação, estas derivas gigantes.

Penso no amor. E em toda a intensidade com que se torna avassalador, como uma obra de arte total, em que tudo se investe de sentido. Como o tentamos entender, definir, explicar e aperfeiçoar. E é como se aterrasse de súbito em Bayreuth, para a temporada de Wagner. Espectadores em fato de cerimónia para a gala total. Esse excesso de tudo, que Wagner teorizou no conceito de obra de arte total, Gesamtkunstwerk. O ideal plurissensorial da unidade absoluta entre drama e música, com todas as expressões interligadas em torno de uma única ideia dramática, ultrapassando as fronteiras da individualidade de cada arte. Dança, teatro, canto, cenografia, figurinos, artes plásticas e a luz, ao serviço da ideia. Na sua luta contra o frívolo e efémero, produziu um novo conceito de ópera, esmagador e completo. A totalidade pelo excesso. Um perfeccionismo de cortar a respiração.

O que me lembra os gelos cortantes de outro romântico, Caspar David Friedrich. E aquele quadro em particular, que se chama “A Morte da esperança” ou “Mar de gelo”, tão premonitório. Ninguém como ele traduziu essa visão romântica do dramatismo da natureza e do homem face à natureza. Onde estamos, no momento, sem parecer ver.

Noutros quadros, sempre as figuras de costas, que escondendo o olhar, de algum modo dão a ver. Uma luz melancólica. E a luz é o que torna visível com uma tonalidade e uma expressão própria.

Mesmo aquela luz mais a norte. A impiedosa luz total a recusar o apaziguamento das trevas nocturnas como cama para o sono. Que não vem. Faltam as trevas. E o desejo, nelas, do dia-luz seguinte. A luz demais do dia polar com noites brancas e os dias demasiado escuros da noite polar. Em ciclos longos demais para o que estamos habituados. A natureza e a crueldade da luz. Por isso penso depois nessa serena, majestosa, branca e antagónica natureza muito a norte, em suicídio progressivo e imparável. Há que resolver essa equação de opostos. O melhor que o homem produz, talvez a arte, e o perigo de morte no pior que o homem faz e deixa acontecer, como se nada fosse. O melhor e o pior. Esse monstruoso peregrinar dos gigantes do Ártico, que vêm como baleias suicidar-se à vista da Terra Nova, para entretenimento de turistas que lhes fazem o último retrato, antes que acabem por submergir nas águas salgadas a sua essência visível. E mergulhar no nada. Esse perigoso nada. Como se deus a dizer és água e à água tens de voltar. Naquele frio intenso a que pouco resiste, algo faz derreter mesmo o gelo mais antigo.

Mostram o rosto mas não mostram o coração. Os icebergs. Há contudo uma beleza escondida mesmo na imensa parte invisível. Um dia destes, um deles deu uma reviravolta sobre si, talvez em agonia, dando a ver uma cristalização diferente e inesperada entre azuis e verdes. E ficamos a saber que um mundo colorido pode existir abaixo da superfície das águas e para lá daquele deserto de brancos. Às vezes eu digo, vida, que não precisas de esperar ir ao fundo, tão fundo, para algo te tocar. E o amor não tem que ser a obra de arte total, razão e estética, mas a natureza. Dos sentimentos. Ou mesmo dos sentidos.

As lâminas cortantes de gelo de Friedrich lembram-me a luz. A luz que é razão e foco. A utopia, essa, corre. A luz é o contrário, capta e incide. E no entanto, em inglês, luz é sinónimo de “leve”. A luz intensa não é macia e doce. É cortante. Uma luz macia atenua as formas, esmorece as sensações. Às vezes queremos uma realidade coada. Que não fere. Mas é no balanço entre a suavidade de um meio e a pujança de uma forma saturada em cor, que se emociona a alma. Ou mesmo o contrário, a veemência do meio em contraste com a delicadeza das formas em cores diluídas. Contrastes.

O que será a luz senão um ponto de encontro entre o inexistente para os olhos e a alquimia do que é revelado – a cor – daquilo que afinal existe. Potencial. Tão importante como o visível, é o que existe. Tão importante, quanto lhe demos importância para além do olhar. Mas saber o volume e a textura que sobra para além do olhar é diferente de saber a cor, as sombras inerentes e produzidas. A luz revela. O que existe incolor num quarto escuro e não o colorido invisível, o que não existe. Mas não tudo. Ao produzir existência visível do que é possível tornar visível e no recobrir o inacessível aos olhos. O que, do que não se vê, existe? As cores, ao contrário da zona submersa dos icebergs, das pessoas, não.

Da luz que incide, reflecte-se apenas uma parte, uma cor, resguardando outras. Como uma máscara do visível, a luz. Como um olhar. Penso como tudo afinal se centra no olhar mergulhado noutro olhar, a tornar visível o outro, como existência. E não na utopia de ver as mesmas miragens nas mesmas dunas dos mesmos desertos. Que somos todos. Essa é talvez a única luz e a luz possível do olhar. A profundidade subjacente que se lhe intui de desconhecido para lá da superfície da córnea. Ver o outro e ser visto, é o momento do encontro. Ao mesmo tempo e no mesmo lugar mas frente a frente. Paisagem da paisagem. O olhar que habita o olhar outro. Tudo o resto, a ponta submersa do iceberg. Mesmo se desconhecida, sinal de que este vive nas suas águas e não enceta o caminho para a diluição no todo. Reduzido então a nada. O que importa não é o dar a ver mais do que o outro ser visto, ver no outro um espaço. Dizer-se habitar e habitado. Uma interioridade para além do visível.

Lugares. Marco um pontinho no mapa. Qualquer lugar. E deixo-o entalado no livro sobre a mesa do vagão-restaurante, esperando que o desconhecido volte para uma bebida quente e o retome do mesmo lugar onde o deixou. E de repente ali está ele a olhar-me, como se tivesse adivinhado tudo até ao pontinho preto no mapa. Como se me visse em perspectiva desde que nasci, tão persistente o seu olhar. De pudor, poiso os olhos em fuga daqueles, no livro e vejo perplexa que o título mudou: A biblioteca de Icebergs de B. Arrepio-me a pensar que é para essa morada póstuma que tendem. Com um nome, uma letra e um número de referência como livros mortos numa biblioteca. Para memória. Como em B. a ausência do olhar não significa não ver. O desconhecido pegou lentamente no livro dizendo baixo preciso dele. Com um sorriso quase imperceptível, como se emergindo do mais invisível e, quase juraria, até à parte submersa de mim. Icebergs, disse. E o poder cortante da luz, quando o meu mundo parou ali, partido em dois. Ou o tempo. E já não desviei os olhos curiosamente presos sem remédio. Como se na linha e caminho de um raio de luz. A luz são os olhos a tornar visível.

Pensando ainda em Wagner e na tetralogia, pensei que afinal faltava a estas narrativas a quarta dimensão.

20 Abr 2020

Trilogia

Aqua

[dropcap]C[/dropcap]ustei a encontrar aquele desenho antigo, recuar quatro décadas de pastas e memórias. Sou a figura sentada. Não essa, a outra mais atrás e que não se vê.
Como agora, enquanto caminho ao seu encontro.

Não há nada tão profundo e misterioso como uma figura densamente de costas. Quieta numa impressão de imutabilidade. Absolutamente desconhecida, mesmo se no recorte em desenho sobre a tela limpa do céu, é única e ímpar. De quem se vai ao encontro e que chega sempre antes e está ali. De mãos nos bolsos a um metro da vedação à beira do perigo da arriba e, inevitavelmente com o olhar na lonjura. E de frente para o todo. Seria sempre diferente se eu viesse ao longo do carreiro que debrua a falésia e o apanhasse de perfil.

Não há nada mais distante do que um perfil. Não se revela a quem vê, nem revela o que vê. E, no entanto, contém como se inevitável, a possibilidade do movimento. De o rosto se voltar num olhar que nos vê chegar.

Uma coisa estranhamente desconfortável, penso.

Eu tinha aquela paixão antiga. Uma pintura de Magritte. O homem em grande plano, de olhar invisível e costas estanques para o observador e aquela rosa enorme e evidente. Onde só ela se expõe num olhar luxuriante de exorbitância e desafio. Um recorte nítido frio e cortante de rigor. Ali, naqueles ombros que escondem o olhar invisível do homem, o observador vê-se a olhar-se a si próprio. Ultrapassa-os numa paradoxal dificuldade em simultaneamente se ver e ser visto. Tudo numa única figura. E a imagem, de um absoluto congelamento, torna-se inquietante lugar dessa substituição que se sucede sem parar.

E a rosa, quase esboça um sorriso enigmático. Às vezes – muito raramente – surpreende-se numa pessoa esse rigor frio num olhar furtivo e nu, apressado e real, que de outras vezes se protege. Momentos fugazes de uma nitidez aleatória no meio de outras fugas. Mas naquela rosa, a abertura de todos os mistérios. A crua incisão do que pode ser um olhar de dentro para fora, ou a dura perspectiva que da paisagem se intromete olhos a dentro. O perigo que reside escondido no olhar de cada um, ela denuncia e repõe. O enigma que é o olhar do outro, o risco sem erro. Quanto muito coberto de desconhecimento mas sempre num desenho que é uma forma alternativa de realidade. O olhar do outro sobre o nosso olhar de nós. Esse o mais lancinante de hermetismo à beira da desconstrução. Como na falésia ali, a subtil erosão.

Avanço lentamente em silêncio, a prolongar a eternidade contida nos sinais que fazem o momento. Nestas costas voltadas para mim, a oferecer a vista ampla do lugar. E do olhar como se tornado o meu. Eu via o que me era dado ver naquele reverso de outro olhar. E nada pode ser mais completo e entendido do que ver o que o outro vê. Caminho devagar e nunca amei tanto. Tamanho desconhecido à minha frente e tamanha paisagem em frente a nós.

Tive medo de que ao aproximar-me acontecesse tornar-me numa daquelas personagens de Borges numa noite à beira rio – num conto que já não sei – talvez o rio da prata. Que se encontram no mistério da sua deambulação solitária. E um deles desencanta perante a perplexidade do olhar do outro o misterioso e irreprimível livro de areia. Numa imagem poética a lembrar similitudes de Foucault. O abismo incomensurável presente em cada microcosmos, o abismo de eternidade num segundo. O de profundidade numa ínfima paragem de tempo. Enquanto avanço tudo isto me vem à memória e tenho medo de ver mais do que me é mostrado neste olhar que não vejo mas aponta ao horizonte.

O que é grande torna-nos ínfimos e calmos e faz sentido. Chega aqui, longínquo o estampido espumoso das ondas em baixo. Mas ao longe e olhando adiante, o mar é calmo, uniforme, enorme. Protege inúmeros e infinitos segredos subaquáticos. Como se nada mais do que uma manta turquesa ou esmeralda consoante a luz. E isso dá-lhe uma espessura quase quente, mesmo nesta manhã fria de primavera.

É tudo uma questão de escala e acuidade do olhar na textura complexa que se nos apresenta. O que é grande permanece imutável. Só as circunstâncias se movem. O imponderável persiste.
Da próxima vez, o meu lugar. Aquele lugar estranho que ando para te mostrar. Mas tenho que tentar entendê-lo. E chegar antes, para que o vejas.

30 Mar 2020